quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Natal no Serviço










(para os actores)

PERSONAGENS:
O utente anterior, na fila de espera, a Renata e a Lílite –
Renata, uma amiga da Lílite –
Lílite –
Um funcionário do Guichet –
Dr. Otto Rank –
Drª. Melanie Klein, a Directora do Serviço –
Dr. Sigmund, o chamado Dr. EstranhoAmor –

CENÁRIO:
Dividido em três áreas. Da direita para a esquerda, a primeira área com um átrio que comporta um pórtico, encimado por um dístico – "Serviço de Psiquiatria Imaginarium", e um guichet. Na segunda área – ao centro, englobando a tela –, um corredor em perspectiva, com três portas, do lado esquerdo. À esquerda, a terceira área: uma área isométrica de exíguas e cúbicas salas-consultórios.

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(para o público)

(aparece na tela o seguinte título, durante um espaço de tempo)
Lílite e o seu Destino – 1º Acto – de Jorge Taxa

(seguidamente, aparece na tela o cenário contido, que faz parte do restante papel-cenário do palco)

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(No átrio estão pessoas na fila de espera. No segundo lugar, estão duas amigas. Após o utente anterior ter sido atendido, recebido um recibo e uma receita, e tendo ido embora, é a vez delas)

Renata – Olá, bom dia. Se faz favor, diz-me se aqui é o Serviço de Psiquiatria Imaginarium?
O Funcionário do Guichet – É sim.
Renata – Podia, então, dizer-me se a utente Lílite tem agora consulta?
O Funcionário do Guichet – Deixe-me ver aqui... (procura no computador) Ahh... Pois. Tem sim, tem agora às dez horas.
Renata – Obrigada. (fala para a amiga) Estás a ver, Lílite. Tens consulta agora, às dez. Vamos sentarmo-nos ali, na sala de espera. Guiamo-nos pelo relógio.

(As duas amigas sentam-se na sala de espera, enquanto outras pessoas – figurantes – estão sentadas nas cadeiras da sala de espera do átrio. Dois doutores – a Drª Melanie Klein e o Dr. Sigmund – vêm, do exterior do Serviço, de encontro a outro – o Dr. Otto Rank, que tinha estado sempre no átrio a ler uma revista. Os três doutores cumprimentam-se)

Drª. Melanie Klein – Olá, bom dia, Dr. Otto. Então, como vai isso?
Dr. Otto Rank – Olá, bom dia, Dr.ª Melanie Klein. Tudo bem, obrigado.
Drª. Melanie Klein – Hoje, apresento-lhe um doutoríssimo chamado Dr. Sigmund, o Dr. EstranhoAmor.

(Otto e Sigmund cumprimentam-se quase em uníssono) – Olá, bom dia.

Drª. Melanie Klein – Dr. Otto, tem agora alguma consulta com pacientes?
Dr. Otto Rank – Tenho, agora, na Sala Quinze. Por sinal, chama-se Lílite…
Drª. Melanie Klein – Óptimo! Então, o Dr. Sigmund, o chamado Dr. EstranhoAmor, vai guiá-lo na sua consulta. Ele poderá exemplificar algumas das suas teorias muito avançadas. Bom dia, Dr. Otto e Dr. Sigmund. Bom trabalho aos dois.
Dr. Otto Rank e Dr. Sigmund (ao mesmo tempo) – Bom dia, Drª. Melanie.

(Despedem-se, ficando o Dr. Otto Rank e o Dr. Sigmund, e saindo Melanie Klein de cena)

Dr. Otto Rank – Venha, Dr. Sigmund. Vai acompanhar-me na consulta da Lílite.
Dr. Sigmund – Muito bem.

(Entram para uma das salas, muito apertados, e sentando-se, encolhem-se com os cotovelos na ortogonal)

Dr. Otto Rank – Faça o favor de entrar, paciente Lílite.

(Entra Lílite para a sala, onde se encolhe)

Lílite – Olá. bom dia!... Ui! Aqui está tão apertadinho… Que espaço mais pequeno!
Dr. Otto Rank – Bom dia, Lílite. Se calhar, tem razão...
Dr. Sigmund – Deixe-me prosseguir, Dr. Otto. Ouça, Lílite, por acaso você queria a consulta num estádio?
Dr. Otto Rank – Até podia ser. Podia ser uma terapêutica peripatética… O Dr. Sigmund sabe – aquela actividade do Aristóteles e dos discípulos do Liceu em que o ensino se fazia caminhando ao ar livre... Terapêutica peripatética: que acha?
Dr. Sigmund – Peri… Peri… Eu acho é que o meu caro Dr. está é a precisar da Ris… da Ris... Peri… Dona. Mas diga-me lá, Lílite, o que é que a traz por cá? Conte-nos algo…
Lílite – Às vezes, ando com saudades da era hippie
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto: hippie – já está visivelmente a falar do “pipi”. A sexualidade latente…
Dr. Otto Rank – Ela só estava a dizer que gosta dos hippies…
Dr. Sigmund – Mas diga-me mais, Lílite. O que é que faria nessas festas dos hippies?
Lílite – Oh! Sei lá, dançava, divertia-me com os meus amigos: com o José, com a Marília, com o Alberto, com a Renata…
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto: “Renata”. O que é que tira daí? Renata? Renascida! Num instante, passou da sexualidade para o nascimento…
Dr. Otto Rank – Mas ela só estava a dizer que tem uma amiga chamada Renata…
Dr. Sigmund – Prossigamos. O que é que sente, Lílite, ultimamente?
Lílite – Oh! Sei lá, sinto uma grande dose de desejo.
Dr. Sigmund – Mas sente falta de quê?
Lílite – Eu? Não sinto falta de nada. Sinto só muito desejo.
Dr. Sigmund – Mas sente falta de quê, propriamente?
Lílite – Não sinto falta de nada, já lhe disse. Sinto… desejo!
Dr. Sigmund – Mas sente falta de quê?!
Lílite – Nada a menos! Desejo a mais! Estou até muito bem saciada: comi há um bocado uns espinafres como o Poppey...
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto. Poppey é a figura paterna, os espinafres representam a mãe e, a carência que ela sente, remete para si própria…
Dr. Otto Rank – Mas ela só disse Poppey como há muitas outras coisas no mundo…
Dr. Sigmund – Já estou a ver que lhe fazia falta uma boa dose de Ziprexa, Dr. Otto. Prossigamos. Lílite, conte-me os seus últimos sonhos.
Lílite – Sonhei há poucos dias com uns lobos…
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto: o lobo – uma figura propriamente de Elektra, "O Capuchinho Vermelho"…
Dr. Otto Rank – Mas ela não disse um só, mas vários lobos!…
Dr. Sigmund – Já vi que, ao Dr. Otto, lhe faz falta o Seroquel.
Dr. Otto Rank – Dr. Sigmund, pois, em si, acho que há uma descompensação de Haldol!

(Os dois voltam-se de costas um para o outro e assim ficam. Lílite acaba por sair do minúsculo consultório, suspirando, incompreendida. No caminho de saída encontra a amiga)

Renata – Então, Lílite. Correu bem, a consulta?
Lílite – Engraçada, Renata. Lembras-te das nossas festas hippies?
Renata – Claro que me lembro. Woodstock! Bob Dylan! Jimmy Hendrix! Janis Joplin! Led Zeppelin! Jefferson Airplane! Donovan! Olha, que tal à tarde vermos mais daqueles desenhos animados do Poppey que tenho gravados em minha casa? Podemos alterná-los com leituras de Kafka, agora que te dás ao vegetarianismo.
Lílite – E que é que isso tem a ver com o meu pai? Ou com a minha mãe? Ou até... comigo? Não achas que o vegetarianismo já existia antes de mim?
Renata – Claro que acho! Mas não estou a ver o porquê de estares a falar nos teus pais. Que é que se passa?
Lílite – Nada, nada...
Renata – Vamos lá?
Lílite – Não posso... Tenho ainda de tomar o injectável.
Renata – Façamos, então, o seguinte. Tu vais tratar disso e eu vou indo, pois é útil antecipar já umas arrumações que tenho em casa para fazer. Encontramo-nos depois. Até logo, Lílite.
Lílite – Até logo, Renata.

(Sai Renata de cena. Depois, sai Lílite. Aparece na tela, retroprojectado, o seguinte dizer)

FIM DO 1º ACTO

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(para os actores)

Personagens:
Dr. Otto Rank –
Dr. Sigmund –
Drª Melanie Klein –
John Nash –
Lílite –
Renata –
Dr. Felix Guattari –

Cenário: O mesmo de Lílite e o Seu Destino – o átrio com o pórtico a dizer "Serviço de Psiquiatria Imaginarium", o corredor, as salas – o Serviço.

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(para o público)

(seguidamente, aparece na tela retroprojectado o seguinte título)

2º Acto
– NATAL NO SERVIÇO –
Autoria das Acções – Colectiva
Coordenação Escrita: Jorge Taxa

(volta a aparecer na tela retroprojectado o cenário contido)

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Cena 1

(estão o Dr. Otto Rank e o Dr. Sigmund, Dr. EstranhoAmor, sentados cada um em sua cadeira da Sala Quinze, com ar de zangados, voltados de costas um para o outro, até que fala o Dr. Otto Rank)

Dr. Otto Rank – Dr. Sigmund, veja lá a que ponto chegámos! Mas, sugiro-lhe que nos portemos como duas pessoas decentes e profissionais competentes, e não levemos a sério uma ou outra discussão. Enfim, isso é muito natural no nosso meio...
Dr. Sigmund – Sim, concordo. Afinal, eu ultimamente tenho dado muito pouca atenção ao Acaso, quase não acredito nas coincidências... O Dr. Rank sabe, os lapsus perturbam-me..
Dr. Otto Rank – Mas não acreditar que há coincidências – isto é, não acreditar no Acaso –, pode ser um início, que pode também ser um indício, de um pensamento psicótico...
Dr. Sigmund – Tem razão, Dr. Rank. Ando perturbado. Tendo a familiarizar, a sexualizar tudo... A atribuir à falta – ou, como dizem os franceses, à manque – e às coincidências, e aos lapsus, um sentido, demasiado pesado...
Dr. Otto Rank – Hoje, é mais comum-mente reconhecido, na disciplina psiquiátrica, que o delírio não tem origem, necessariamente, na triangulação edipiana, mas é mais propriamente histórico-mundial, feito de mitos e heróis. E sabe-se que o desejo é positivo, não correspondendo a "uma carência"...
Dr. Sigmund – Peço-lhe mil escusas, pela minha inactualidade.
Dr. Otto Rank – Mas, veja! O Dr. Jacques Lacan propôs um retorno às suas teorias – as freudianas, meu caro Dr. Sigmund –. Ele está ali (aponta), na Sala Seis, com a utente Carole (aponta), esta bela rapariga, do filme de Roman Polansky: ela sente, antes de mais nada, "repulsa"...
Dr. Sigmund – Vejo que desta Sala do Serviço de Psiquiatria Imaginarium dá para nos apercebermos do que se passa no interior de cada um dos consultórios que o constituem. É engraçado! Só vemos as cabeças!
Dr. Otto Rank – Sim, esta arquitectura do Serviço Imaginarium é de um arquitecto holandês da vanguarda, em que as paredes são todas de vidro e insonorizantes para o exterior. Tudo se passa como se fosse uma arquitectura transparente, cristalina – como aquele político português que escreveu "O Partido Com Paredes de Vidro".
Dr. Sigmund – Ah! Sim, claro, o revolucionário Álvaro Cunhal. Mas aqui, no Serviço Imaginarium, vejo que tem doentes muito famosos. Vejo ali (aponta) Vincent Van Gogh.
Dr. Otto Rank – Sim, acompanha-o (aponta) o Dr. Gachet. Não são só utentes famosos, todo o pessoal médico é constituído por altas eminências da psiquiatria. Quanto aos utentes, encontra-os – o Dr. Sigmund – não só reais, mas irreais, pois a nossa ciência permitiu encarná-los. São saídos de filmes e de obras da literatura.
Dr. Sigmund – Caracteres, sejam quais forem: pessoas reais, personagens ficcionais...
Dr. Otto Rank – Sim. Por exemplo: ali, nas salas laterais, encontra também (aponta) o utente Norman Bates – do filme "Psycho", de Hitchcock –, fatalmente determinado pelo carácter da sua mãe possessiva, acompanhado pelo sexólogo (aponta) Doutor Alfred Kinsey.
Dr. Sigmund – Ah, sim! O do célebre "Relatório"...
Dr. Otto Rank – Mais: (aponta) o utente Truman – do filme "Truman Show", de Peter Weir –, supostamente saído de um show montado por um arquitecto, acompanhado pelo reflexologista (aponta) Doutor Ivan Pavlov, que está a estudar os seus "reflexos condicionados".
Dr. Sigmund – Sim, vejo ali, na Sala Oito, também, (aponta) o meu colega da "psicologia analítica", o Dr. Carl Jung e, mais acima, na Sala Quatro, (aponta) o colega da "psicologia individual", o Dr. Alfred Adler. Quem é o seu paciente?
Dr. Otto Rank – É João de Deus (aponta), alter-ego de João César Monteiro, vindo das "Recordações da Casa Amarela".
Dr. Sigmund – Diagnosticado com "esquizofrenia paranóide", temos ali – já o conhecia –, (aponta) acima de Adler, na Sala Dois, o utente Trelkovsky. É um inquilino que julga que os vizinhos estão a coludir para o seu suicídio, transformando-o na anterior locatária.
Dr. Otto Rank – Isso lembra-me uma história...
Dr. Sigmund – Sim, claro. É a inesquecível trama do filme "O Inquilino", de Polansky. E nestas salas à direita?
Dr. Otto Rank – Aqui, na Sala Nove, encontra o poeta-dramaturgo francês, (aponta) Antonin Artaud, acompanhado pelo seu Doutor Ferdière (aponta). Ferdière também é o médico da conceituada poeta-artista plástica Unica Zurn (aponta)...
Dr. Sigmund – Mas ela está a ser acompanhada actualmente, nesta Sala Sete, pelo (aponta) behaviorista – que eu conheço – John Watson, o qual tentará basear-se somente nos comportamentos da utente. E nesta (aponta)? A Sala Cinco?...
Dr. Otto Rank – Aqui, em cima, na Sala Cinco (aponta), encontra o utente-poeta português, Ângelo de Lima, com o Doutor Miguel Bombarda (aponta): o qual achou, na sua fisionomia, um enorme filão psiquiátrico...
Dr. Sigmund – Aqui, em baixo (aponta), ainda vejo a conturbada – devido a excesso de álcool – Amy Winehouse. E quanto àqueles, ali, à esquerda, à espera levantados, quem são?
Dr. Otto Rank – São, ali (aponta) R.P. McMurphy, que diz estar "Voando Sobre Um Ninho de Cucos...". A seguir (aponta), Camille Claudel, escultora promessa de Rodin...
Dr. Sigmund – Irmã do fluente Paul Claudel. Aquele conheço (aponta). É Bartleby, saído da pena de Herman Melville, que antecipa todas as frases com a palavra "preferia". Restam-nos os doentes da sala de espera. Quem são?
Dr. Otto Rank – Temos ali, da esquerda para a direita, sentados, (aponta) o utente James Cole, que diz ter "Doze Macacos". (aponta) A utente Ida Dalser, que diz ser a mulher de, e ter um filho de, Benito Mussolini.
Dr. Sigmund – Ah, sim! Marco Beloccio conta-nos a história dela no filme "Vincere"...
Dr. Otto Rank – Pois. E temos, a seguir (aponta), a utente Zhanna, apaixonada por Bryan Adams.
Dr. Sigmund – Andrey Konchalovskiy faz dela a protagonista da pitoresca "Casa de Loucos"...
Dr. Otto Rank – E, por fim, (aponta) a utente Janet Frame, que tenta ser "Um Anjo À Nossa Mesa".
Dr. Sigmund – Carácter ficcional surtido da visão já pós-modernista de Jane Campion.
Dr. Otto Rank – Mas, Dr. Sigmund, aproveito e chamo agora o próximo utente a ter consulta. Que diz?
Dr. Sigmund – Claro, força nisso!
Dr. Otto Rank – Chamo à Sala Quinze o utente John Nash.

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Cena 2

(entra John Nash para a Sala Quinze)

Dr. Otto Rank – Olá, bom dia, John Nash.
Dr. Sigmund – Olá, bom dia, senhor John Nash.
John Nash – Olá, bom dia. Happy Christmas, como se diz na minha terra!
Dr. Otto Rank – Bom Natal, senhor Nash! Então? Diga-nos lá que tal é que correm as coisas...
John Nash – Correm bem, Doutor. A minha matemática está cada vez mais evoluída.
Dr. Sigmund – Ah! O senhor Nash gosta de matemática?
John Nash – Sim, é a minha área. Mas há jogos interessantes e também gosto de jogos. Por exemplo, como considerar – como uma poetiza-pensadora e deputada-apresentadora portuguesa já falecida, chamada Natália Correia – que "Um mais um é igual a um".
Dr. Sigmund – Eu também gosto bastante de matemática. Sugiro, John Nash – para fazer uma demonstração dos meus conhecimentos e deixá-lo mais à vontade, de modo a explanar-se na conversa –, que eu ponha agora em prática um verdadeiro ilusionismo, ou uma magia, ou uma prestidigitação, ou um truque matemático. Pode ser?
John Nash – Pode, claro, estou curioso. Força nisso!
Dr. Sigmund – Vou solicitar aos espectadores desta peça teatral, cada um à vez, um algarismo.
(o Dr. Sigmund procede em conformidade, solicitando aos espectadores “um algarismo?”)

Primeiro espectador – (de 0 a 9) a.
Segundo espectador – (de 0 a 9) b.
Terceiro espectador – (de 0 a 9) c.
Quarto espectador – (de 1 a 8) d.

(o Dr. Sigmund escreve num papel, para todos verem, "abcd", mostrando ao público. E faz, em seguida, de cabeça, a conta abcd – a)

Dr. Sigmund – Então, eu digo que a,bcdbcdbcdbcdbcd... = abcd – a /999

(confirma-se na calculadora do computador retroprojectada)

(o Dr. Sigmund faz de cabeça a conta abcd – ab)

Dr. Sigmund – Agora, digo que ab,cdcdcdcdcd... = abcd – ab /99

(confirma-se na calculadora do computador retroprojectada)

John Nash – Parabéns, Dr. Sigmund. Sinto-me, assim, mais confortável, no meio de gente tão racionalista – dado que a matemática também é uma espécie de lógica...
Dr. Otto Rank – Então, diga-nos, John Nash. Por falar em "lógica"... Como vai aquela história da "perseguição dos Serviços Secretos"?
John Nash – Ah!... Quanto a isso, esteja descansado, Doutor. Fiz o meu insight! Compreendo agora que padeço naturalmente de um desiquílibrio, a nível de dopamina, no cérebro, e que, se não for suprido artificialmente com um neuroléptico, faz-me descompensar e delirar. É a "boa nova" natalícia que tenho para transmitir ao Doutor.
Dr. Otto Rank – Isso parece-me um progresso, uma evolução. Parabéns, Nash! E quanto à saúde física? A idade apoquenta?
John Nash – Um achaque ou outro, mas nada de especial. Vai tudo bem, obrigado.
Dr. Otto Rank – Já tomou o injectável?
John Nash – Já, Doutor. Encontrei lá a minha amiga Lílite...
Dr. Sigmund – E quanto aos sintomas secundários: quero dizer, da medicação...
John Nash – Tudo bem, Doutor. Menos tremores e menos acatísia.
Dr. Otto Rank – Então, vejo que só nos resta desejar-lhe um Happy Christmas, e... Quer juntar-se a nós e almoçar connosco?
John Nash – Sim, mas concerteza. Já estou com apetite.
Dr. Otto Rank – Então, vamos a isso. Vamos, Dr. Sigmund?
Dr. Sigmund – Sim, um simpósio – ou banquete, para os antigos Gregos – natalício. Vamos!

(saem os doutores Otto e Sigmund, e John Nash, da Sala Quinze. Entretanto, Lílite, que havia entrado em cena, dirige-se de encontro a eles. Encontram-se os quatro à frente da tela, a meio do caminho. Fala o Dr. Otto)

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Cena 3

Dr. Otto Rank – Olá, Lílite! Ainda por aqui? Queríamos pedir-lhe desculpa por, há pouco, termos sido um tanto incompreensivos consigo...
Lílite – Não faz mal, Doutor. Todos temos os nossos dias. Sei que os médicos não são feitos de pedra, nem de ferro, nem de plástico, nem de nada inorgânico... São pessoas como nós!
Dr. Sigmund – Obrigado pela atenção, Lílite, no que toca, principalmente, à minha parte...
Dr. Otto Rank – Mas com proposições psicológicas tão interessantes e tão espirituosas, só posso convidar também a nossa paciente, Lílite, a juntar-se a nós e almoçar connosco, aqui, na Cantina do Serviço Imaginarium. Que diz, Lílite?
Lílite – Por mim, pode ser. Tudo bem!
Dr. Otto Rank – Então, assim seja. Vamos ao almoço!

(passam os quatro, por assim dizer, a "caminhar parados", como se estivessem a pisar uvas, frente à tela, a meio da boca de cena. Duas pessoas vestidas de funcionários do Serviço trazem, para esse mesmo centro do palco, para próximo dos quatro, uma mesa, coberta por uma toalha, com víveres natalícios e talheres sobrepostos. Os quatro vão buscar as três cadeiras da Sala Quinze, e uma cadeira da Sala de Espera, e instalam-nas em redor da mesa, sentando-se nelas. Fala o Dr. Otto Rank)

Dr. Otto Rank – Então, Dr. Sigmund, Lílite e John Nash. Que acham desta pantagruelice? Ao dispor da nossa... gulodice?!
Dr. Sigmund – Está muito bem! Parabéns ao Serviço Imaginarium! Eu gosto do Bolo-Rei!
Lílite – Eu prefiro estes mexidos!
John Nash – Para mim, três rabanadas com mel!
Dr. Otto Rank – Eu vou pelo arroz-doce!... Eu consideraria que, os parabéns, o Dr. Sigmund deve dá-los, por esta data, não ao Serviço Imaginarium, mas a Jesus e a todos os que nasceram pelo Natal. Mas, vejam: a Drª. Melanie Klein está a chegar...

(irrompem em cena a Drª. Melanie Klein com a Renata, que entretanto pegam em duas cadeiras, das da sala de espera, e juntam-se à mesa)

Drª. Melanie Klein – Olá, boa tarde a todos. Peço desculpa pelo atraso...
Dr. Otto Rank – Que não foi quase nenhum! Sugiro que se junte a nós. Vejo que traz uma companhia...
Drª. Melanie Klein – Sim, é a Renata, que estava à sua procura, Lílite, e eu disse-lhe que devia andar ainda por aqui. Afinal, encontrámo-la!
Dr. Otto Rank – Cinco é o número de letras de Jesus; seis é o número de letras de Cristo. Já somos seis à mesa...
Drª. Melanie Klein – Não, Doutor Otto! Sete! Sete, que é o número de letras de Emanuel. E o sétimo – que deve estar quase a chegar – é o Doutor Felix Guattari, vindo da Clínica La Borde...

(irrompe, entretanto, em cena o Dr. Felix Guattari)

Dr. Felix Guattari – Estão a falar em mim? Olá, boa tarde!
Drª. Melanie Klein – Olá, boa tarde, Doutor Felix! Como vai, esse "Chaosmos"? E os seus colegas da antipsiquiatria, o Doutor David Cooper e o Doutor Ronald Laing?
Dr. Felix Guattari – Ficaram – como já lhe tinha dito – num almoço natalício com o filósofo Michel Foucault. Debaterão, decerto, sobre a História da Loucura.
Dr. Sigmund – Gostava de agradecer-vos a todos, meus amigos. Lembro-me – agora, que é Natal – de um cântico da minha infância...
Dr. Otto Rank – Sugiro que nos dê o mote inicial e, a seguir, cantemos todos juntos.
Dr. Felix Guattari – Por acaso, este Serviço Imaginarium, tem um piano? Eu poderei dar as tónicas...

(trazem um teclado para um local do palco apropriado e aparece, retroprojectada do computador, a seguinte letra do tema "Os Pais Natais", do album "Os Amigos de Gaspar", de Sérgio Godinho)

"Já que é já Natal, –
Se um Pai Natal houver –
Mais que dois ou três, então, à vez –
Podemos ser, sei lá –
O Pai Natal sempre de alguém –
De quem não tem direito ao seu presente –
Resplandecente..."

Dr. Sigmund – (canta) Já que é já Natal, se um Pai Natal houver – mais que dois ou três, então, à vez – podemos ser, sei lá – o Pai Natal sempre de alguém – de quem não tem direito ao seu presente – resplandecente...

Todos – (cantam) Já que é já Natal, se um Pai Natal houver – mais que dois ou três, então, à vez – podemos ser, sei lá – o Pai Natal sempre de alguém – de quem não tem direito ao seu presente – resplandecente...

FIM

sábado, 26 de novembro de 2011

Jorge Barreto Sobre Lílite e o Seu Destino / NATAL-IMAGO

A IDEIA DA PEÇA É BOA, CONTUDO, PODES E SABES FAZER MUITO MELHOR. ASSIM, AQUI VÃO AS CRÍTICAS:

– NÃO EXISTE CONTEXTUALIZAÇÃO DAS INFORMAÇÕES, FACTOS OU DADOS QUE PERMITAM CHEGAR ONDE O AUTOR PRETENSAMENTE NOS QUER LEVAR;

– AS PERSONAGENS DEVEM SER MAIS FORTES;

– OS DIÁLOGOS SÃO POUCO CONSISTENTES. APENAS DEMONSTRAM A CULTURA DO AUTOR. HAVENDO UM MERO INDICIAR OU NOMEAÇÃO DE SITUAÇÕES;

– CONFUSÃO ENTRE TEATRO, CINEMA E TEXTO (CORRIDO OU DECLAMADO)

– NÃO HÁ RESPEITO PELAS REGRAS DA ESCRITA DE TEATRO (FALTA DE DOMÍNIO?);

– NÃO HÁ NOÇÃO DE ESPAÇO CÉNICO.

ATENCIOSAMENTE,
DO AMIGO
JORGE BARRETO

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

2ª versão do 2º e último Acto - NATAL NO SERVIÇO

(para os actores)

Personagens:
Dr. Otto Rank –
Dr. Sigmund / John Ballantyne –
Drª Melanie Klein –
John Nash –
Lílite –
Renata –
Dr. Alexander Brulov –

Cenário:
O mesmo de Lílite e o Seu Destino – o átrio com o pórtico a dizer "Serviço de Psiquiatria Imaginarium", o corredor, as salas – o Serviço.

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(para o público)

(aparece na tela retroprojectado o seguinte título)

2º Acto, 2ª Versão
– NATAL NO SERVIÇO –

(volta a aparecer na tela retroprojectado o cenário contido)

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Cena 1

(estão o Dr. Otto Rank e o Dr. Sigmund, Dr. EstranhoAmor, sentados cada um em sua cadeira, com ar de zangados, voltados de costas um para o outro, até que fala o Dr. Otto Rank)

Dr. Otto Rank – Dr. Sigmund, veja lá a que ponto chegámos! Mas, sugiro-lhe que nos portemos como duas pessoas decentes e profissionais competentes, e não levemos a sério uma ou outra discussão. Enfim, isso é muito natural no nosso meio...
Dr. Sigmund – Sim, concordo. Afinal, eu ultimamente tenho dado muito pouca atenção ao Acaso, quase não acredito nas coincidências... O Dr. Rank sabe, os lapsus perturbam-me..
Dr. Otto Rank – Mas não acreditar que há coincidências – isto é, não acreditar no Acaso –, pode ser um início, que pode também ser um indício, de um pensamento psicótico...
Dr. Sigmund – Tem razão, Dr. Rank. Ando perturbado. Tendo a familiarizar, a sexualizar tudo... A atribuir à falta – ou, como dizem os franceses, à manque – e às coincidências, e aos lapsus, um sentido, demasiado pesado...
Dr. Otto Rank – Hoje, é mais comum-mente reconhecido, na disciplina psiquiátrica, que o delírio não tem origem, necessariamente, na triangulação edipiana "eu-papá-mamã", mas é mais propriamente histórico-mundial, feito de mitos e heróis.
Dr. Sigmund – A palavra agora é "agenciamentos". Não é?
Dr. Otto Rank – Isso mesmo, agenciamentos do espaço exterior. Sabe-se também que não há um recalcamento filial com "desejo de morte" associado, em relação ao pai, mas que, a ostensividade inicial, é a paterna em relação ao filho. E que o desejo é positivo, e não corresponde a "uma carência"...
Dr. Sigmund – Peço-lhe mil escusas, pela minha inactualidade.
Dr. Otto Rank – Mas, veja! O Dr. Lacan propôs um retorno às suas teorias, meu caro Dr. Sigmund. Ele está ali, na sala seis, com a utente Carole: que sente, antes de mais nada, "repulsa"...
Dr. Sigmund – Vejo que desta sala do Serviço de Psiquiatria Imaginarium dá para nos apercebermos do que se passa no interior de cada um dos consultórios que o constituem. É engraçado! Só vemos as cabeças!
Dr. Otto Rank – Sim, esta arquitectura do Serviço Imaginarium é de um arquitecto holandês da vanguarda, em que as paredes são todas de vidro e insonorizantes para o exterior. Tudo se passa como se fosse uma arquitectura transparente, cristalina – como aquele político português que escreveu O Partido Com Paredes de Vidro.
Dr. Sigmund – Mas aqui, no Serviço Imaginarium, vejo que tem doentes muito famosos. Vejo ali Vincent Van Gogh.
Dr. Otto Rank – Sim, acompanha-o o Dr. Gachet. Não são só utentes famosos, todo o pessoal médico é constituído por altas eminências da psiquiatria. Quanto aos utentes, encontra-os – o Dr. Sigmund – não só reais, mas irreais (pois a nossa ciência permitiu encarná-los), saídos de filmes e de obras da literatura.
Dr. Sigmund – Caracteres, sejam quais forem: pessoas reais, personagens ficcionais...
Dr. Otto Rank – Sim. Por exemplo: ali, nas salas laterais, encontra também o utente Norman Bates, fatalmente determinado pelo carácter da sua mãe possessiva, acompanhado pelo sexólogo Dr. Alfred Kinsey. E o utente Truman, supostamente saído de um show montado por um arquitecto, acompanhado pelo reflexologista Dr. Ivan Pavlov, que está a estudar os seus "reflexos condicionados".
Dr. Sigmund – Sim, vejo ali, na sala oito, também, o meu colega da "psicologia analítica", o Dr. Carl Jung e, mais acima, na sala quatro, o colega da "psicologia individual", o Dr. Alfred Adler. Quem é o seu paciente?
Dr. Otto Rank – É João de Deus, vindo da "Casa Amarela". Diagnosticado com "esquizofrenia paranóide", temos ali, acima de Adler, na sala dois, o utente Trelkovsky. É um inquilino que julga que os vizinhos estão a coludir para o seu suicídio, transformando-o na anterior locatária.
Dr. Sigmund – E nestas salas à direita?
Dr. Otto Rank – Aqui, na sala nove, encontra o poeta-dramaturgo Antonin Artaud, acompanhado pelo Dr. Ferdière. Ferdière também é o médico da conceituada Unica Zurn, mas ela está a ser acompanhada actualmente, nesta sala sete, pelo behaviorista John Watson, que tenta basear-se somente nos comportamentos da utente.
Dr. Sigmund – E nesta? A sala cinco?...
Dr. Otto Rank – Aqui, em cima, na sala cinco, encontra o utente poeta Ângelo de Lima com o Dr. Miguel Bombarda, que achou, na sua fisionomia, enorme filão psiquiátrico...
Dr. Sigmund – E quanto àqueles, ali, à esquerda, à espera, levantados?
Dr. Otto Rank – São R.P. McMurphy, que diz estar "num Ninho de Cucos...". Camille Claudel, escultora promessa de Rodin e irmã do fluente Paul Claudel. E, por fim, Bartleby, saído da pena de Herman Melville, que antecipa todas as frases com a palavra "preferia".
Dr. Sigmund – Restam-nos os doentes da sala de espera. Quem são?
Dr. Otto Rank – Temos, da esquerda para a direita, sentados, o utente James Cole, que diz ter "doze macacos". A utente Ida Dalser, que diz ser a mulher de, e ter um filho de, Benito Mussolini. A utente Zhanna, apaixonada por Bryan Adams. E, por fim, a utente Janet Frame, que tenta ser "um anjo à nossa mesa". Mas, Dr. Sigmund, aproveito e chamo agora o próximo utente a ter consulta. Que diz?
Dr. Sigmund – Claro, força nisso!
Dr. Otto Rank – Chamo à sala quinze o utente John Nash.

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Cena 2

(entra John Nash para a sala quinze. NOTA: John Nash traz uma gravata às riscas)

Dr. Otto Rank – Olá, bom dia, John Nash.
Dr. Sigmund – Olá, bom dia, senhor John Nash.
John Nash – Olá, bom dia. Happy Christmas, como se diz na minha terra!
Dr. Otto Rank – Bom Natal, senhor Nash! Então? Diga-nos lá que tal é que correm as coisas...
Dr. Sigmund – Espere, Dr. Otto. A sua gravata, senhor Nash... Essas riscas...
John Nash – Ora essa! Mas as gravatas às riscas são as minhas favoritas!
Dr. Otto Rank – Que se passa, Dr. Sigmund? As riscas da gravata do senhor Nash perturbam-no?...
Dr. Sigmund – Deixe, Dr. Otto. Essas riscas... Não, deixe lá. Eu controlo-me, prometo. Estejam descansados, não se preocupem comigo. Mas diga, senhor Nash... As coisas correm bem?
John Nash – Correm bem, Dr. A minha matemática está cada vez mais evoluída.
Dr. Sigmund – Ah! O senhor Nash gosta de matemática?
John Nash – Sim, é a minha área. Mas há jogos interessantes e também gosto de jogos. Por exemplo, como considerar como uma pensadora-poetiza e deputada-apresentadora portuguesa já falecida, chamada Natália Correia – que "um mais um é igual a um".
Dr. Sigmund – Eu também gosto bastante de matemática. Sugiro, John Nash – para fazer uma demonstração dos meus conhecimentos e deixá-lo mais à vontade, de modo a explanar-se na conversa –, que eu ponha agora em prática um verdadeiro ilusionismo, ou uma magia, ou uma prestidigitação, ou um truque matemático. Pode ser?
John Nash – Pode, claro, estou curioso. Força nisso!
Dr. Sigmund – Vou solicitar aos espectadores desta peça teatral, cada um à vez, um algarismo.

(o Dr. Sigmund procede em conformidade, solicitando aos espectadores “um algarismo?”)

Primeiro espectador – (de 0 a 9) a.
Segundo espectador – (de 0 a 9) b.
Terceiro espectador – (de 0 a 9) c.
Quarto espectador – (de 1 a 8) d.

(o Dr. Sigmund escreve num papel, para todos verem, "abcd", mostrando ao público. E faz, em seguida, de cabeça, a conta abcd – a)

Dr. Sigmund – Então, eu digo – não sem que essas riscas me desconcentrem um bocado... – que a,bcdbcdbcdbcdbcd... = abcd – a /999

(confirma-se na calculadora do computador retroprojectada)

(o Dr. Sigmund faz de cabeça a conta abcd – ab)

Dr. Sigmund – Agora, digo – também não sem a desconcentração proveniente das riscas... – que ab,cdcdcdcdcd... = abcd – ab /99

(confirma-se na calculadora do computador retroprojectada)

John Nash – Parabéns, Dr. Sigmund. Sinto-me, assim, mais confortável, no meio de gente tão racionalista – dado que a matemática também é uma espécie de lógica...
Dr. Otto Rank – Então, diga-nos, John Nash. Por falar em "lógica"... Como vai aquela história da "perseguição dos Serviços Secretos"?
John Nash – Ah!... Quanto a isso, esteja descansado, Doutor. Fiz o meu insight! Compreendo agora que padeço naturalmente de um desiquílibrio, a nível de lítio e serotonina, no cérebro, e que, se não for suprido artificialmente com um neuroléptico, faz-me descompensar e delirar. É a "boa nova" natalícia que tenho para transmitir ao Doutor.
Dr. Otto Rank – Isso parece-me um progresso, uma evolução. Parabéns, Nash! E quanto à saúde física? A idade apoquenta?
John Nash – Um achaque ou outro, mas nada de especial. Vai tudo bem, obrigado.
Dr. Otto Rank – Já tomou o injectável?
John Nash – Já, Doutor. Encontrei lá a minha amiga Lílite...
Dr. Sigmund – E quanto aos sintomas secundários: quero dizer, da medicação...
John Nash – Tudo bem, Doutor. Menos tremores e menos acatísia.
Dr. Otto Rank – Então, vejo que só nos resta desejar-lhe um Happy Christmas, e deixá-lo ir à sua vida.
John Nash – Bom Natal, Doutores, e boas Entradas em 2012! Passai bem!
Dr. Otto Rank – Adeus, Bom Natal! Até à vista!
Dr. Sigmund – Bom Natal, senhor Nash!

(sai John Nash de cena. Ficam, ainda na sala quinze, os doutores Otto e Sigmund. Fala o Dr. Otto Rank)

Dr. Otto Rank – Olhe, Dr. Sigmund. Eu combinei, hoje, pela manhãzinha, com a Drª. Melanie Klein, almoçarmos juntos. E... Está na hora do almoço. Quer juntar-se a nós e almoçar connosco?
Dr. Sigmund – Sim, mas concerteza. Estou com apetite.
Dr. Otto Rank – Então, vamos a isso.

(saem os doutores Otto e Sigmund da sala quinze. Entretanto, Lílite, que havia entrado em cena, dirige-se de encontro a eles. Encontram-se os três à frente da tela, a meio do caminho. Fala o Dr. Otto)

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Cena 3

Dr. Otto Rank – Olá, Lílite! Ainda por aqui? Queríamos pedir-lhe desculpa por, há pouco, termos sido um tanto incompreensivos consigo...
Lílite – Não faz mal, Doutor. Todos temos os nossos dias. Sei que os médicos não são feitos de pedra, nem de ferro, nem de plástico, nem de nada inorgânico... São pessoas como nós!
Dr. Sigmund – Obrigado pela atenção, Lílite, no que toca, principalmente, à minha parte...
Dr. Otto Rank – Mas com proposições psicológicas tão interessantes e tão espirituosas, só posso convidar também a nossa paciente, Lílite, a juntar-se a nós e almoçar connosco, aqui, na Cantina do Serviço Imaginarium. Que diz, Lílite?
Lílite – Por mim, pode ser. Tudo bem!
Dr. Otto Rank – Então, assim seja. Vamos ao almoço!

(passam os três, por assim dizer, a "caminhar parados", como se estivessem a pisar uvas, frente à tela, a meio da boca de cena. Duas pessoas vestidas de funcionários do Serviço trazem, para esse mesmo centro do palco, para próximo dos três, uma mesa, coberta por uma toalha, com víveres natalícios e talheres sobrepostos – entre os quais, garfos. Os três vão buscar as três cadeiras da sala quinze e instalam-nas em redor da mesa, sentando-se nelas. Fala o Dr. Otto Rank)

Dr. Otto Rank – Então, Dr. Sigmund e Lílite. Que acham desta pantagruelice? Ao dispor da nossa... gulodice?!
Dr. Sigmund – Está muito bem! Parabéns ao Serviço Imaginarium! Eu gosto do Bolo-Rei!
Lílite – Eu prefiro estes "mexidos"!
Dr. Otto Rank – Eu vou pelo "arroz-doce"!... Eu consideria que, os parabéns, o Dr. Sigmund deve dá-los, por esta data, não ao Serviço Imaginarium, mas a Jesus – Emanuel – e a todos os que nasceram pelo Natal. Mas, vejam: a Drª. Melanie Klein está a chegar...

(irrompe em cena a Drª. Melanie Klein, que entretanto pega numa cadeira, das da sala de espera, e junta-se à mesa)

Drª. Melanie Klein – Olá, boa tarde a todos. Peço desculpa pelo atraso...
Dr. Otto Rank – Que não foi quase nenhum! Mas... Sugiro que se junte a nós. Sente-se, Drª. Melanie. Bom apetite!

(a Drª. Melanie senta-se e todos começam a comer. Enquanto comem, fala Lílite)

Lílite – Vou contar-vos uma história engraçada. Há cerca de semana e meia atrás, o Juvenal, o namorado da minha amiga Margarida, ofereceu-lhe – por ocasião do seu aniversário – um gatito de estimação. Mas "a peste", a primeira marca que deixou, foi uma cicatriz que a Margarida agora tem, na parte superior do antebraço – umas linhas paralelas... Muito paralelas e longilíneas...
Drª. Melanie Klein – Eu posso tentar exemplificar. Será assim, a cicatriz?...

(a Drª. Melanie Klein raspa, com o garfo, a toalha da mesa, num sentido longilíneo, para exemplificar)

Dr. Sigmund – (bruscamente) Deve haver uma reserva de toalhas inesgotável neste Serviço!

(pausa breve)

Drª. Melanie Klein – Dr. Sigmund! O que é que lhe deu?...
Dr. Otto Rank – Eu sei... Devem ser as riscas... Que o perturbam... Há pouco, pensei que fosse excesso de "transferência". Mas não – agora, entendo: são as riscas...
Dr. Sigmund – Sim, são as riscas... Perturbam-me... Essas riscas... Assustam-me!... Não tem noção da clave?... Vejam... Digo melhor: ouçam!... é perfeitamente atonal!... Já nem sei quem sou... Antes de nos sentarmos, descobri, no meu casaco, esta cigarreira – vejam – com as iniciais "J.B.", e não sei o que querem dizer...

(é então que, ainda não tinha acabado o Dr. Sigmund de dizer estas palavras, irrompe em cena o Dr. Alexander Brulov)

Dr. Alexander Brulov – ...Mas sei eu! Eu sei o que querem dizer as iniciais J.B...
Drª. Melanie Klein – Dr. Alexander Brulov! Que surpresa! Meus senhores: apresento-vos o renomado psiquiatra Dr. Alexander Brulov. Quem diria que você agora ia aparecer... do nada! E, afinal, o que é que querem dizer essas iniciais?
Dr. Alexander Brulov – Querem dizer John Ballantyne. É essa a verdadeira identidade do suposto Dr. Sigmund, com quem pensam estar a falar.
Dr. Otto Rank – Bem me queria parecer que havia aqui algo de estranho...
Dr. Alexander Brulov – Tudo se explica. Já venho, desde há algum tempo, a seguir os seus passos, caro John Ballantyne. Não se preocupe: o senhor não matou o verdadeiro Dr. Sigmund Freud. Esse está vivo e a sua saúde recomenda-se.
John Ballantyne – Vivo? Freud está vivo?... Mas isso é...
Dr. Alexander Brulov – Tenha calma. Ele e os seus amigos, antes de procederem ao seu escape dos boches nazis e traspassarem a fronteira, propagaram o boato que Freud já tinha sido executado para melhor esconder os seus planos de fuga.
John Ballantyne – Fuga. Ah!... Mas ele fugiu?...
Dr. Alexander Brulov – A execução foi um boato. Você, meu amigo, quando ouviu esse boato, – admirador autodidacta do pioneiro da Psicanálise – acreditou que tinha sido você próprio a assassinar Freud, em visível descompensação e em delírio histórico-mundial, e veio aqui parar ao Serviço Imaginarium, em presumível substituição dele...
John Ballantyne – Eu, Dr.?... Mas porquê? Com que fito?
Dr. Alexander Brulov – Para dissimular um crime que acreditava ter cometido. Mas esteja descansado, amigo: não o cometeu de todo.
Drª. Melanie Klein – No entanto, caro John Ballantine, isso não quer dizer que não esteja a precisar de medicação e de passar uns dias connosco no Internamento…
John Ballantyne – Sim, sim. Eu tinha deixado de tomar o medicamento, agora me lembro. Entrei em euforia e deu-me uma total amnésia: eu próprio acreditei ser Freud!
Dr. Alexander Brulov – E assim confundiu o suposto assassino que se julgava com o suposto assassinado: passou a ser ele...
Drª. Melanie Klein – E concorda que deve descansar uns dias aqui connosco?
John Ballantyne – Sim, não há problema. Sobretudo, fico contente por não ser nenhum criminoso e por me libertar um pouco desta situação angustiante...
Lílite – Mas, Dr. Brulov, o que é que fazia arrepios a Ballantyne: o garfo ou o atrito da toalha?
Dr. Alexander Brulov – Nem o garfo, nem o atrito, Lílite. Mas as marcas do garfo na toalha, as riscas paralelas e compridas. John Ballantyne era, antes de demonstrar sintomatologia psicótica e passar à fase nosográfica, estudante da Escola de Psicologia, nunca tendo chegado a terminar o curso...
Dr. Otto Rank – Por isso, demonstrava dotes científicos. E é muito parecido com Freud. Nem dei pela diferença...
Dr. Alexander Brulov – Sim, tem uma semelhança física enorme e dispõe de dotes científicos lógicos-matemáticos. Além disso, chegaram a dar-lhe ideias de vir a ser compositor sinfónico, por pueril e adolescente formação musical; mas ficou com uma enorme frustração por nunca ter vindo a sê-lo...
Lílite – Por isso, as linhas paralelas...
Dr. Alexander Brulov – Sim. Isso mesmo, Lílite! As linhas paralelas correspondiam à pauta. Uma pauta metia-lhe horror e impregnava-o de uma sensação de dívida, conjugação de um trauma. O paroxismo disto levou-o à amnésia total e subsequente despersonalização alienadora.
John Ballantyne – Agora, que começo a recordar-me, como John Ballantyne que sou, gostava de agradecer-vos a todos, meus amigos – sem esquecer o contributo da inestimável Lílite –. Lembro-me – agora, que é Natal – de um cântico da minha infância...

(entretanto, irrompe Renata em cena e diz)

Renata – Olá, Lílite, despachei-me mais cedo e vim buscar-te. Olá a todos, sou a Renata! Está a falar de cânticos, o senhor psiquiatra? Também posso cantar?
John Ballantyne – Bem, eu não sou psiquiatra...
Renata – Pensei que fosse... Está vestido com uma bata!
Drª. Melanie Klein – Deixe lá, Renata, não complique muito. Foi só uma confusão momentânea: tudo está resolvido. E, agora – que tudo está bem quando acaba bem –, sugiro então que você, John Ballantyne, nos dê o mote e cante o seu cântico de Natal, de modo a finalizarmos este caso com todo o agrado e o agrado de todos.

(aparece, retroprojectada do computador, a seguinte letra da canção "Os Pais Natais", do album "Os Amigos de Gaspar", de Sérgio Godinho)

"Já que é já Natal, se um Pai Natal houver –
Mais que dois ou três, então, à vez –
Podemos ser, sei lá –
O Pai Natal sempre de alguém –
De quem não tem direito ao seu presente
Resplandecente..."

John Ballantyne – (canta) Já que é já Natal, se um Pai Natal houver – mais que dois ou três, então, à vez – podemos ser, sei lá – o Pai Natal sempre de alguém – de quem não tem direito ao seu presente – resplandecente...

Todos – (cantam) Já que é já Natal, se um Pai Natal houver – mais que dois ou três, então, à vez – podemos ser, sei lá – o Pai Natal sempre de alguém – de quem não tem direito ao seu presente – resplandecente...

FIM

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Alexandre Teixeira Mendes sobre 'Heurética'


Sexta-feira, Janeiro 05, 2007

Alexandre Teixeira Mendes lê Jorge Taxa

Jorge Taxa: pensar não é fácil


O dionisíaco e o geométrico, problemas e extensões

Alguns textos são únicos e insubstituíveis, enraízam-se na condição necessária do pensar: uma inter-disciplinaridade vislumbrada. Entre esses textos, encontra-se Heurética de Jorge Taxa (Incomunidade, Dezembro, 2006). Vários níveis estão misturados aqui: o seu discurso matemático convincente, que se apoia, ao que parece, nas geometrias não euclidianas, revela-nos uma arte de filosofar sub-entendida. Este livro-tese – que traz consigo novos domínios de investigação – explana-se através da vocação poiética ou criadora, formadora, da linguagem. Ousaríamos dizer como Lacan que as funções homogéneas da consciência são a identidade da linguagem e um estado de desconhecimento. Concedemos por enquanto – como assinalou Richard Peters – que as palavras são como "postes sinalizadores erguendo-se numa terra estranha". Quem pode e sabe superar o carácter subdeterminado da experiência – e por isso útil para fazer desabrochar o aspecto criativo do uso da linguagem – melhor saberá formular esquemas e argumentos válidos: problematizar. Como poderia Jorge Taxa proceder de outro modo? Hoje, sabemos que não é possível abordar o nosso tempo sem evocar o alcance da semiótica, da heurística e da revolução científico-tecnológica que ditou a inserção de conceitos físico-matemáticos nos estudos estéticos. O quadro, assim exposto, explica por que o nosso autor re-assumiu, num estilo de supressão-acréscimo, – quando está na ordem do dia a questão da desmaterialização da cultura material – as interconexões das linguagens lógico-formais e geométricas como da filosofia e do pensamento poético.

"Armação lógica"

O seu género ensaístico desenvolve-se – para usar um rótulo normativo – a partir da influência do modo matemático de pensar (associado à "armação lógica") e em última instância da filosofia especulativa (que se traduz na tentativa de construir teorias sobre a realidade, ou o cosmos, ou o que seja, para explicar características problemáticas do pouco que realmente sabemos sobre as coisas). O estranho, sim, neste estudo, que inclui dois artigos – "Existensão – cinco pontos notáveis em borbotom" e "Três heurekas geométricos" –, é a simbiose do assertório e do apodíctico, do dionisíaco e do geométrico. Notemos que, pelo menos neste caso, a sua abordagem também se caracteriza pelo uso do "pastiche" como modo de exposição. Basta considerar ainda as referências ao método de demonstração matemática, que consistem na dedução lógica da proposição que há que demonstrar a partir de outras proposições previamente estabelecidas. Não obstante, refere-se, este livro, às visões especulativas e críticas de Zenão, Platão, Demócrito, Erasmo, Nietzsche, Stirner, Bergson, Eugene Catalan, Gauss, Escher, Penrose, Deleuze ou Aldo Rossi. Tudo isso parece claro e natural.

Diabolus

As reflexões de Heurética, examinadas na perspectiva filosófica e trans-disciplinar, remetem-nos a uma linha própria de investigação que tem por base o comentário sistemático e erudito. Jorge Taxa explora ao máximo o ponto de vista diferencial. Na sua meditação – e aqui está a grande diferença – não se identifica com o exacto, o objectico, o simétrico. Hoje, todos sabemos que a ciência, de modo geral, só fornece afirmações prováveis, não é infalível. Poder-se-ia observar, seguindo os grandes lógicos da modernidade, a prevalência da noção de consistência no pensamento axiomático. "Se a matemática é consistente, – anotou Kurt Godel –, então ela é incompleta". A dificuldade nesse caso provém de uma formulação imperfeita do pensamento? A "indecidibilidade"? Dever-se-ia dizer, ainda remetendo o leitor para Heurética, que Jorge Taxa não apenas recorre à matemática, mas à poética. A sua familiaridade com a geometria – como p.e. a euclidiana que os entendidos dizem se sustenta bem em nosso pequeno mundo – parece de capital importância. Esse é o primeiro ponto. Mas o que significa quando o nosso autor refere o Diabo: o Diabolus na matemática? Assim, por exemplo, quando nos diz serem os números irracionais – pela insusceptibilidade de definição – vivas epifanias diabólicas? "Hoje, o Diabo está em refastelo no âmbito epistemológico, – acrescenta –, sendo a matemática um cofre-forte purulento: são os horizontes-limite cosmológicos, é o princípio de incerteza" (p.6). Afigura-se-nos que um exame rápido da experiência humana revela o conflito tradicionalmente polarizado entre Deus e o Diabo (é bem assim, aliás, que o concebia José Régio). Se a palavra Deus corresponde a algo é bem a uma nova maneira de colocar e de explorar o facto Absoluto (o Absolutamente-Diferente): uma maneira que teve o seu ponto de partida na filosofia de Kierkegaard. Mas não nos afoitemos de dizer que o Diabo ou Satã é a personificação do mal. Satanás é, também, um denominação proveniente da tradição judia, em concreto da literatura do período apocalíptico. Deriva, no seu sentido estrito, de uma raiz que significa "opor-se", "obstruir" ou "acusar". Diremos que a palavra Satã – e é a única maneira de não incidir na confusão – significa "opositor" e traduz o grego "diabolos", "adversário". Sabemos que, por sua parte, Diabo é a denominação derivada do latim diabolus, por sua vez proveniente do grego diabolos (caluniador ou acusador) de diaballein (caluniar). O sentido da raiz diaballein é, como já dissemos acima, "opor-se". Até aqui a primeira dificuldade. Não custa lembrar que a experiência do religioso traga implícitas apenas duas possibilidades: a adoração ou o ateísmo da revolta. Característica neste particular é a atmosfera demoníaca que envolveu num bloco compacto toda a religião. Quer dizer: a chamada demonologia das origens ou, melhor dizendo, as crenças associadas ao tabu e ao mana, e em que o sacrifício passou a ter um objectivo expiatório (e, nessa medida, a reconciliação com os "demónios"). De facto, há uma consonância – como acontece frequentemente – entre o medo divino e a repulsão demoníaca.

"Fazer emergir"

Jorge Taxa é um pensador "de grau n" (que permanece fora das órbitas canónicas). A sua leitura deixa a impressão fenomenológica do "fazer emergir". Citando com frequência filósofos e matemáticos na "contramão" do seu tempo, Jorge Taxa não se contentou em encontrar um título particularmente feliz.
E é porque recordamos uma narrativa relativamente pouco conhecida de Edgar A. Poe – em torno do universo material e espiritual – Eureka –, publicado em Março de 1949. Quem uma vez entrou em contacto com este verdadeiro poema cosmológico, para sempre se sentirá atraído por ele. Mas avancemos. Conhecem-se as linhas mestras das reflexões de Taxa; elas adivinham-se no texto intitulado "Três heurekas geométricos". O que interessa fixar como ponto assente são as configurações de um questionar à luz do contributo da geometria e do seu influxo (enquanto projecção primeira da apresentação axiomática de uma disciplina matemática). A geometria origina-se como uma forma de raciocinar, de acordo com um certo ideal metódico (assente em teoremas pré-existentes). Nesse plano, trata-se de algo que pode pôr-se em evidência à margem de toda a doutrina filosófica. A razão geométrica constrói dedutivamente certas sínteses de elementos a partir de certas sínteses dadas. As primeiras se chamam teoremas e, as segundas, postulados: mas umas e outras são no essencial de idêntica natureza e só se distinguem pela sua diversa função metódica: umas são sínteses postas em virtude do método: outras, são sínteses dadas, das quais depende a possibilidade do exercício do método mesmo. Contudo – e aqui está a grande diferença –, Jorge Taxa refere-se a um matemático da importância de Gauss que realizou a experimentação: por métodos ópticos – usando a interpretação física da linha recta como a trajectória de um raio de luz – determinou a soma dos ângulos de um amplo triângulo delimitado pelos cumes de três montanhas. Dentro dos limites do erro experimental, descobriu que essa soma é igual à dos ângulos rectos. À diferença dos critérios de Eugene Catalan, respeitantes às formas geométricas do dodecaedro, os passos que Jorge Taxa ensaia, no assim chamado Triacontaedro Rômbico TX, são cautelosos. Este "algo" – mais fortemente visível nas ilustrações – remete-nos a um universo perceptivo e heurístico. Finalmente, constataremos a (re)leitura de borbotom de Alberto Augusto Miranda. O seu ponto de partida é a análise do "arsenal semioclasta e blasfemo" deste autor, que explora ao máximo esse entrelaçamento do que o filósofo Donald Davidson chama de esquema de triangulação: falante–intérprete–mundo. Um texto esquizofrenicamente cindido e percebido como "cifra", onde a descontinuidade pressupõe o continuum, que desenha, a seu ver, a face de um "automatismo mediúnico e catártico" (p.8). É essa a situação: a de um texto teatral "rizomático" – compulsivo-obssessivo – que se dissimula para além ou no seio da palavra irredutível.


Alexandre Teixeira Mendes

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Crítica de Rui Ribeiro a 'O Imenschurável - Téssera Verso'

Este livro de Jorge Taxa está dividido em tésseras, termo este que possui vários sentidos. Pode, por exemplo, ser uma peça de mosaico ou então as placas que eram colocadas aos pescoços dos escravos romanos. Todo o livro é divido nestes itens – tésseras; fazendo lembrar a ideia de concentração de fragmentos, que Walter Benjamin vaticinou como um regresso do barroco. Estas pequenas peças vão-se amontoando, construindo e identificando formas, que são lapidadas por uma atenção incisiva que faz a reunião de elementos simbólicos. Um reconhecimento (symbalon) que depois corre contra o predomínio de formas rectangulares como se de uma loxodromia só prevalecesse o dromos (corrida) abandonando o loxos (oblíqua) na senda de uma filosofia da vontade e de um eterno Retorno do diferente nietzschiano.

A vida está numa forma, numa “casca paralelepipédica”, segundo Jorge Taxa. E que possui a rigidez de uma ditadura... Já em 10 de Janeiro de 1979, numa das suas aulas, Michel Foucault indicaria uma "kehre" (viragem) que encontrara, num apontar nodal para uma alteração de uma postura face às adversidades, a formação de uma imobilização. O "Acheronta movebo" (moverei o Aqueronte) de Virgílio na Eneida foi substituído pelo "Quieta nom Movere" do primeiro-ministro britânico (em exercício durante 1720-1742) Robert Warpole e que, com esta postura do não agitar as águas, conquistaria agrados parlamentares, mantendo a estabilidade do quieto na ocupação do formigueiro. Seria já um indício para o falhanço do Modernismo que se avizinhava. Deixou-se de acreditar numa evolução da humanidade, operando-se uma sucessiva desarticulação dos saberes, pela especialização e proliferação da lógica de cada macaco no seu galho. Postura, esta, que enojaria qualquer moderno mas que, hoje, é tida como norma para evitar a nefasta dispersão. Daí o alimento ser tão insonso e o livre-arbítrio coisa já longinqua.

O falanstério zaratustriano erige-se como uma nova utopia. Baseado em premissas nietzschianas, stinerianas e fourierianas. … proposta uma nova trindade espiritual que emane um antiteísmo e uma visão teleológica explosivamente esférica e arborescente. E, tal como Thomas Morus, Taxa descreve num momento, poético-euréktico: a poiesis, a fisiologia e as fundações e usos da sua utopia. Ciente da expressão “monumento para o futuro” que Deleuze invocava e que seria próprio de uma obra indestinada… intestinada… menor.

O falanstério que Taxa apresenta nas suas páginas tem a pretensão, não sem um capricho de viandante pulsão dionisíaca, de sistematicamente se constituir num Empório possível. Surge-nos como uma visão fantástica a lembrar um Luciano de Samósata ou o Somnium de Kepler. Um falanstério habitável em que o ócio nunca crie o não-ócio (neg-ócio) numa versão optimizada e futurista da oikonomia grega onde um superavit ou abundância é esperada naturalmente como uma gravitação dos fluxos organizativos de uma comunidade salubremente capaz de habitar o falanstério, de ser falansteriana. Que se induza uma forma de estar económica, em-si muito semelhante a uma postura grega de não desejar mais do que se pode ter, de não retirar da natureza um filão extenso que a fere irremediavelmente; o equilíbrio grego da physis, limite que a tekné deverá sempre respeitar. Ou a ideia de involução de Gilles Deleuze de ser mais leve, de saber deixar para trás… O quando de involução tem a evolução!

… Inevitável, com o Falanstério de Zaratustra, tecer comparações à República de Platão; com a sua estrutura organizativa, bem como a alusão às essências platónicas (cinco com o éter) o mesmo número de poliedros regulares conhecidos pela época. Sendo agora nove o mesmo número de dodecaedros que constituem as arestas do estudo-tentativa de um Triacontaedro Rômbico TX de Jorge Taxa (que numa forma simplificada se pode reduzir ao número impar de três) e que visa a formação de novos sólidos capazes de preencher o espaço, uma nova descoberta geométrica, que por peripécia clarividência, se assemelha à velha questão do ovo de Colombo (pp. 43-44). Esta nova geometria seria, na opinião do autor, concordante com novos fenómenos arquitectónicos que influiria numa fenomenologia heterodoxa com bastante espaço para o acaso e para uma anarquia harmoniosa onde o múltiplo e o plural consiga triunfar. Daí também a acérrima crítica ao Pavilhão Carlos Ramos, de Siza Vieira, e ao inalterável das formas rectangulares e paralelepipédicas que fazem escola e difusão.

A capacidade de narrativa e o povoamento de referências de Jorge Taxa, fazem com que crie situações, estique conceitos e explore limites. … esta a sua originalidade e o seu anima – por pertencer a um reduzido número de pessoas que intentam saber cada vez mais para poder criar diferente. O rito no ricto do riso é um exemplo desta sagaz capacidade de jogar, sendo ou não um jogador de esféricas palavras que derrubam mecos. Os seus Desenhos Hidratantes continuam a explorar referências mas trazem também um receituário vivencial com situações quotidianas misturadas com estados de espírito que um desenho intenso e construtivo (às vezes numa forma de propositada sobreposição) nos revela o ambiente onde este autor se de-move.

Rui Ribeiro

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Crítica de Thomas Jayes a 'O Imenschurável - Téssera Verso'

Crítica a "O Imenschurável" por Jorge Taxa

Introdução

No que diz respeito à crítica artística e à leitura, desde cedo me apercebi que, quando lemos material novo, ou apreciamos um quadro, o objecto artístico não existe isoladamente. Ele é o produto de um tempo, local, cultural de um indivíduo.
Mais importante que isto, contudo, e talvez menos intuitivo, é o facto de esse objecto artístico não poder ser concebido isoladamente. Quando a arte é interpretada, vista, ou lida, o indivíduo que absorve a produção cultural não o pode fazer como uma tábua rasa, uma folha em branco onde o artefacto cultural se reproduza.
Naturalmente que o resultado é o de que assumimos o objecto, e catalogamo-lo nas caixas que já dividem a nossa mente, usando um qualquer “imperativo categórico” pré-construído, e tentamos conciliar a nossa visão do mundo com aquilo que a arte nos quer dizer. Se a mensagem for boa, poderá mesmo levar-nos a mudar essa visão do mundo. A influência do pós-modernismo (suscitado talvez por uma reinterpretação de Nietzsche) foi tal que chegámos ao ponto de hoje em dia questionar a nossa concepção de arte e literatura – quebrámos as barreiras hierárquicas entre a arte popular e erudita, entre géneros literários, entre heróis e vilões nas nossas histórias, entre o leve e o sério.
Tendo isto em mente, permitam-me que lhes descreva o que vejo no “O Imenschurável” da minha peculiar perspectiva – a de alguém que traiu a sua formação na área das artes para se imiscuir no campo das ciências exactas.

Vectores

Na Física, o movimento de uma bola em arco através do ar, mudando de posição com o tempo, parece ser um evento terrivelmente complexo. Para explicar com detalhe este movimento, é necessário um instrumento especial, denominado “decompositor de vectores.” Primeiro divide-se o espaço em eixos x, y e z, e descreve-se a alteração em cada dimensão como função do tempo. Depois, lidando individualmente com cada dimensão, podemos compor aquilo que parece ser uma complexa equação, mas que descreve em perfeito detalhe este evento aparentemente impenetrável.

No seu livro, Jorge Taxa tenta decompor a complexidade da sua experiência e explorações em componentes de vectores. Neste exemplo, os vectores não são posição na direcção x como funções de tempo, mas antes a matemática é função da filosofia, ou a filosofia como função da arquitectura, a religião como função do humanismo, e por aí em diante. O trabalho está dividido em “Tésseras”, cujo significado é explicado no início. Talvez pudéssemos dizer que esta publicação é a 6 dimensões, mas a verdade é que muitas mais vertentes são trazidas à luz ao longo destas páginas. Cada um dos elementos que emerge contém em si mesmo o mesmo nível de profunda complexidade, de algum modo similiar a um padrão fractal de significado. Independentemente do trabalho de Geometria incluído nas páginas deste livro, o produto final, como objecto cultural em si, assemelha-se a um objecto geométrico, que temos que levantar, virar e movimentar nas nossas mãos para sentir o seu âmago.

Semântica

A obra com que nos deparamos é, por auto admissão, uma peça transdisciplinar e multifacetada. Em certos momentos detalha com grande rigor o tema, mas de modo geral o que nos assombra é o seu conteúdo profundo. Por esse motivo, muitos leitores não se sentirão seguros neste terreno em grande parte da obra… o sentimento de “Desterritorialização” (conceito definido por Deleuze & Guattari) é o resultado de terramotos semânticos mas também de ideias e conceitos estáveis que são postos de lado perante a força do argumento.
Desterritorialização foi em tempos o termo utilizado para descrever o esmagamento dos direitos dos camponeses à terra, para a propriedade privada de lordes e barões – e a linguagem em si mesma passou também por um processo semelhante, com o significado das palavras a tornar-se exclusivo das receitas dos redactores de dicionários e gramáticas. Contudo, o pós-modernismo veio partir esta autoridade imposta. O resultado é o de que uma palavra passa a significar aquilo que o autor pretende que ela signifique… ou até aquilo que o crítico vai interpretar como sendo o seu significado. O autor já não possui o “direito de propriedade”, e o sentimento resultante de desterritorialização pode tornar a comunicação difícil, particularmente quando as ideias que são transmitidas são em si mesmas complexas. Lacan defende que a linguagem não é sagrada na sua origem, nem existe uma pedra na qual a linguagem esteja escrita com o seu efeito definitivo. A Torre de Babel está constantemente presente nas nossas vidas. Não nos esqueçamos que, ao publicar, o autor renuncia ao seu direito de propriedade sobre a sua “terra”. Ela agora pertence às pessoas, aos destinatários, que a vão dissecar e interpretar como entenderem. O acto da publicação é comparável ao nascimento de uma criança – o início de uma nova vida.
Esta polissemia – multiplicidade de significados – é uma ferramenta usada pelo autor, Jorge Taxa, mas é também uma inevitável consequência da produção cultural pós-moderna, e requer uma explicação nesta fase de lançamento desta peça. O conceito de peças inter-dependentes (Tésseras), que neste livro substitui o mais ortodoxo uso dos capítulos, denota o facto de que não estamos perante uma publicação convencional com um início, meio e fim. Não é uma história que começa, culmina e acaba, mas antes uma que gira e revolve, evoluindo a cada passo.

Geometria e Progressões

A Geometria, os limites matemáticos e as progressões, que figuram frequentemente nesta publicação, são enormes edifícios cujas pedras basilares foram lançadas por gigantes.
Confesso que para mim, como iniciante no campo da Matemática, este trabalho está para além da minha capacidade de análise. O autor lamenta a falta de reconhecimento das suas descobertas, referindo deparar-se com um 'deserto de incompreensão.' Neste ponto, recordo-me de uma história contada por Friedrich Nietzsche, sobre o espírito e conquistas humanas. Nesta história, Nietzsche equipara a progressão da Humanidade a três animais – um camelo, um leão, e um bebé. O camelo representa a sabedoria herdade da sociedade, deambulando pelos mesmos caminhos, caregando consigo as memórias e sabedoria das gerações passadas. O leão revolta-se contra o camelo – furioso pela sua falta de compreensão e aceitação das novas ideias. Esta raiva furiosa é passageira, contudo. O futuro, defendia Nietzsche, reside no espírito do bebé. Todos nós deveríamos abordar a vida como recém-nascidos espirituais e intelectuais… só assim podemos aceitar as novas ideias por aquilo que realmente são, e usufruir do genuíno prazer da descoberta. Este é o verdadeiro ubermensch, e o início de uma nova geração de conhecimento.
Quando Galileo Galilei estava convencido que tinha provado que a Terra gira à volta do Sol, em vez de lutar na defesa das suas convicções face à tremenda e geral oposição, ele calmamente sorriu para si mesmo, e disse "Eppur si muove", "e contudo, move-se." Optou por encolher os ombros e avançar para novas descobertas, permitindo ao mundo atingi-lo e dar-lhe razão, muitos anos mais tarde. A minha palavra de confiança para o autor desta obra reside assim nesta certeza: uma ideia de valor irá certamente passar o teste do tempo, e o reconhecimento não tem que ser imediato para poder ser genuíno.

Desenhos

"O Imenschurável" contém uma variada mostra de desenhos, que criam a quinta Téssera. … para mim uma tarefa muito exigente, a de comentar a arte visual através da palavra escrita ou falada, usando um meio de comunicação artístico para descrever um outro. As palavras não são minhas, mas de Elvis Costello, que um dia disse "Writing about music is like dancing about architecture." (Escrever sobre a música é o mesmo que dançar sobre arquitectura). Apesar disto, estes desenhos fornecem-nos uma visão valiosa sobre os momentos que capturam, e a perspectiva através da qual foram retidos.
Os desenhos da Téssera 5 são talvez o aspecto mais imediatista desta publicação para o leitor. Por nos fornecerem uma janela para a visão e a mente do autor naquele momento do tempo, eles dão-nos uma chave para muitos dos temas em questão. Uma qualidade impressionante é a utilização de linhas verticais muito pouco espaçadas, que dissecam as imagens e lhes conferem um aspecto semelhante aos pixels num ecran.
Mais uma vez, Jorge Taxa decompõe a sua experiência em partes que podem ser descritas em detalhe, e depois devolvidas ao geral, com uma sensação de complexidade. Não é tarefa do crítico a de apadrinhar a produção cultural, meramente a de fornecer opiniões, mas não resisto a pedir ao autor que considere produzir uma série de desenhos isoladamente, para que possamos investigar este promissor aspecto com mais detalhe.
A maior parte dos desenhos são a preto e branco, sérios, e apresentando variados graus de detalhe. A excepção, contudo, é o desenho mais marcante. "Perspectiva Có(s)mica do Empório" surge como uma ocupada cacofonia de ideias, um retrato que nos lembra Escher de uma ascensão algo fársica em direcção ao dólar… um retrato cómico dos falhanços da sociedade e dos nossos desejos de trepar os postes para atingir o topo da nossa obsessão pelo dinheiro.

Conclusão

De um modo geral, esta é uma obra forte nas suas convicções e lírica nos seus argumentos. Nunca é fácil convencer as pessoas a abraçar ideias novas, mas desejo ao Jorge e ao seu trabalho todo o sucesso e a maior aceitação.

Thomas Jayes
Tradução: Marta Jayes

17 de Abril, 2010

existensão sobre 'borbotom' de alberto augusto miranda


existensão
cinco pontos notáveis em borbotom


1.

Descompõe-se o arco que disparou em direcção ao alvo de uma maçã arquétipa. Desagua a flecha do sema, tudo no ar se manifesta em variedade. “Atenção – diz Zenão –: a flecha nunca atingirá o alvo.”; e, a partir daí, poucos lograram livrar-se deste nó-gordio, a não ser ao modo expedito de Alexandre: às esgouvinhadas. 22 séculos após Zenão, só tanto tempo depois, Johan Gauss, ainda petiz, suposto pelo professor entretido com os colegas a resolver um problema difícil, apresenta quase de imediato a solução. O problema consistia em somar 1+2+3+4+5+6... até ...98+99+100; a solução correcta de Gauss foi 5050. Tinha achado a fórmula do somatório de uma progressão aritmética. Logo a seguir, veio a do somatório de uma progressão geométrica e estava assim desmistificada, desmitificada (no sentido de esclarecida) a aporia de Zenão. O caso é sério e, por isso, não importa o eventual aborrecimento de offélias exauridas: na verdade, filósofos como Nietzsche ou Bergson, cada um à sua maneira, não ultrapassaram o maldito paradoxo: mercê talvez de incompetência matemática neste preciso ponto dos limites de progressões. Afinal, a flecha atinge o alvo: afinal, Guilherme Tell não precisa de reclamar com o gerente da frecharia. Quando muito, este obtemperará: ”O alvo para onde dispara é que não é o mesmo que quando atingido pela flecha. Nem a flecha é a mesma.” Sim: o corolário reverso do heureka da puerícia gaussiana é que A=B. Compreendido? Já que 0,(9)=1, então A=B. Quem está de novo a aparecer? O Diabo: o Diabolus na matemática.
0,(9) é uma dizima infinita periódica que acaba por inteirar-se, mas que dizer dos números irracionais? Não serão eles – pela insusceptibilidade de definição – vivas epifanias diabólicas? Hoje, o Diabo está em refestelo no âmbito epistemológico, sendo a matemática um cofre-forte purulento: são os horizontes-limite cosmológicos, é o princípio da incerteza. E que dizer das ciências humanas? A tessitura das posições, ou dos ideários, vai de um antípoda ao outro: é claro, com a chancela do “rigor cientifico”. Mas nem ao mais boçal acéfalo escapa a rigidez desta ginástica de máscaras e já tresanda a moralina do “politicamente correcto”. Na verdade, provando-se num papel que A=B (ou que A diferente de A), destitui-se uma lógica aplicada da sua tautológica identidade: reduzimo-la a texto, interpretação (ainda que a contraprova, também ela, seja texto num papel, interpretação). “Não há factos; somente interpretações.” É sobre a matemática que incide o vidro de aumento: não é ela a prima-dona da Razão? Não importa se o problema de Fermat só agora foi resolvido: foi resolvido no papel. Não se escamoteia a pasteurização ou os efeitos em Hiroshima e Nagasaki; mas quando se constata, como Gilles Deleuze, que a “Razão é um fragmento da Des-razão” (o conjunto dos reais compreendendo os irracionais) e se diagnostica, como ele, que o mundo em que vivemos ainda atravessa “estádios vizinhos de zero”, já não nos reconhecemos na fímbria de um qualquer pós-modernismo emancipado.
A irracionalidade remete para o inconsciente, para o sonho, para o animal e para a loucura. A filosofia, desde há muito íntima amiga do Diabo, tem as suas posições sobre o tema. Faz-se aqui o recenseamento de algumas sugestivas: por exemplo, “A loucura é rara nos indivíduos – mas é a regra nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas”; ou “E, por vezes, a própria loucura é uma máscara que esconde um saber fatal e demasiado seguro”; ou “A loucura indica o momento em que as máscaras, cessando de comunicar e de deslocar-se, se confundem numa rigidez de morte”; ou ainda “Em quase toda a parte, é a loucura que aplana o caminho da ideia nova, que rompe a proclamação de um costume, de uma superstição venerada. (...). Compreendem porque foi precisa a assistência da loucura? De qualquer coisa que fosse tão terrível e tão incalculável, na voz e na atitude, como os caprichos demoníacos da tempestade e do mar e, por consequência, de qualquer coisa que fosse, ao mesmo título, digna de receio e respeito?” e “(...) não havia outra coisa a fazer, quando eles não eram verdadeiramente loucos, senão vir a sê-lo ou a simular loucura”. Pensamentos como estes desarmam a norma e instilam a dúvida no formatado mentol: há um grão de razão na loucura – ora é dela, da loucura, que se fez o elogio; não da estultícia – como Erasmo, do marasmo.

2.

borbotom, de Alberto Augusto Miranda, é um número irracional; ou, se se quiser, uma dízima infinita não-periódica, como Pi. “Vem aí a Repetição! Vem aí a repetição!”, exclama-se no seu final. Ora, trata-se do eterno Retorno do diferente: de período não repisado, mas desenvolto no espaço e no tempo numa espiral áurea aerodinâmica. Tal é a relação biunívoca, leal até à infidelidade, que borbotom imprime no decifrar do aparente esoterismo derivado de um manancial de inúmeros hieróglifos. É uma relação de compreensão paulatina: o caudal do borbotão nutre com o tónus das nozes maduras, prodigaliza-se torrentoso. Perpassam, em jacto, no desvelamento do véu apolíneo da ilusão, na dionisíaca dissolução do sentido: a comédia sardónica, a sátira viperina, a paródia barroca; e, já como téssera-reverso, a tragédia licenciada em borboletas.
Aliás, o arsenal semioclasta e blasfemo de borbotom não se reduz a hieróglifos que poderiam parecer demasiado pessoais ou indesvendáveis, num prematuro juízo sobre a cifra escondida e o processo de determiná-la. Além dos hieróglifos, prevalecem os calembures, os oxímoros, os anacolutos, ou até palavras-mala – ou, melhor, conceitos-mala que afloram como motivos no des-concerto: é o caso do “mármore”, das “coxas tatuadas” ou dos “sobreterrâneos”. Não se trata da urdidura de técnicas literárias como causa, com fim deliberado, mas de um automatismo mediúnico e catártico em relação ao qual essa nomenclatura só pode ser adscrita como efeito de um meio acidental. As palavras-mala, os calembures, ou até os anagramas, conotam uma pluralidade de séries de base. Deleuze propõe que é o não sentido que anima as séries, dotando-as de sentido, circulando através delas. É a palavra-mala, “na sua ubiquidade, no seu perpétuo deslocamento, que produz o sentido em cada série e de uma série para a outra, não cessando de deslocar as séries”. Em suma, “o não sentido não é a ausência de significação, mas, pelo contrário, excesso de sentido ou o que dota de sentido o significado e o significante”.
Palavras-mala, palavras-alçapão. Qualificar borbotom como um conjunto de glossolálias lucubrativas oriundas de uma mente perturbada, com o travo dos tanatórios, é trair um carácter de cromo formatado pelo hodierno behaviorismo imperialista da dita “normalidade”. Aliás, quando o objecto borbotom se encontra a ser subitamente folheado por um desses obtusos normativos, este tenta livrar-se dele com a mesma celeridade como se manuseasse... Torresmos incandescentes! Seja queimadura, seja... Dor de cromo!

3.

O violento arsenal semioclasta é a mediúnica libertação do estro poético. borbotom é uma arma de guerra, uma bomba espoletada, “um fuzil apontado à deriva de um imaginário exausto”. Ao invés, não se afirma como um contrapoder de conjuração catilinária, com precisão de mistagogos frenéticos. A irresponsabilidade é iconoclasta; a iconoclastia, irresponsável. Ora, é um erro pensar-se que não se está a jogar: Dionísio é jogador, afirma os membros dispersos; os fragmentos, do acaso. Já então se concede a borbotom a faculdade de veicular as “regras do jogo”, de estabelecer um código quântico: este não se pode localizar aprioristicamente na metalinguagem que se lhe apõe, mas tem de ser reconstruído, ou “descontruído”, seja por um temerário edifício artificial, virtude do “poder do falso”, seja por um processo heurístico policial, na relação com a obra.
É preciso, a expensas das ferradelas iniciais “no ancinho dos desejantes”, conhecer as cartas com que se joga. Mas um pouco adiante e já se apreende que o jogo, aqui, está destituído de princípios teleológicos: que a regra, se a houver, é a de “ao fetiche da eternidade, cheirar-lhe o instante durante o instante, não o colher para o levar para a cama, não ser necrófilo”. Realizar que “tudo se pode reduzir a uma nota, a Verdadeira. O modo, o Intenso com que nos relacionamos com a nota. Como lhe pomos o dedo sem cuidados intensivos de porcelana”. Trata-se, portanto, de um elo iminentemente musical com os avatares do devir cósmico, num diaporama de pendor holístico.


4.

É a capacidade única da música quebrar as mediações de que o logos não prescinde”, ao mesmo tempo que provoca “o retorno ao seio de uma unidade primitiva do ser”. Esta unidade é a micronésima hipótese de actualização do ADN, é o terminal da Tribo. Logo: ”pai nº.5” ou “mãe nº.328” não são glossolálias – consistem, sim, na forja de personagens conceptuais sólidas e espessas; ou seja, com “rigor científico”. Da unidade à pluralidade é um és-não és: somos terminais de tribos sedimentadas no ADN desde há tempos imemoriais. O nosso corpo nem sequer é o mesmo durante dez minutos seguidos: a consciência é volúvel; o alvedrio, irrisório. Quando um dos elementos da tribo se arvora em ditador de todos os outros, ficamos doentes. O suicídio será então um altericídio (quando o ditador o delibera), pois nem sequer se é dono do corpo, ele não nos pertence: escrúpulo ético a sopesar.
O terminal é ab-origem rizomática do automatismo expurgatório das cerca de duas centenas de personagens, congrossistas com direito a pivot que participam na video-conferência. É o coro dos bodes, o coro dos sátiros, que é posto no primeiro plano da “poça”. Pulveriza-se qualquer protagonismo individual: “o conceito é vicinal, não hierárquico”. Então, escutamos o contraponto deste “Theatrum Mundi” e o lirismo da sua oralidade, da sua assertividade que dirige a selvajaria com elegância, infiel às conveniências, num eufónico des-concerto de dissonâncias inconciliáveis.
O fenómeno democrata é actual e os actuais demagogos já soletram “democracia” como um estribilho. Estão estatuídos, na normalidade, os debates democratas com um pivot a moderar e a distribuir, por meio de uma limitada ampulheta, uns grãos de areia a cada participante: é dizer, uns irrisórios minutos de tempo para expor a opinião. Estamos longe da agonística dialógica platónica. O mais certo, é não estar presente no debate ninguém verdadeiramente interessante: signo da diferença e não da antítese. Pelo que, neste igualitarismo democrata, tudo circula pela mais estreita filodoxia.
Borbotom radicaliza uma democracia utópica, que já não se formula nos trâmites tradicionais. Já nem é uma democracia, é uma acracia de micro-poetas, toda uma manifestação rizomática de uma região afectiva autónoma e ferozmente independente.

5.

I’m crazy”, “je suis fou”: os ingleses e os franceses resumem-se a uma frase. Já o português distingue, em cada uma delas, duas orações: “eu sou maluco” ou “eu estou maluco”. O ser e o estar. O ser define-se pela incompletude do ser, ou pelo como se vir a ser o que se é. O estar é mais preciso (e mais conforme com a História); mais preciso ainda, o estando. Estar nómada por vocação e viajar, sem trânsito, pelo transcurso do estando, sem as grilhetas egópatas do ser. Daqui resulta que borbotom se coloca na contenção, no despojamento, na desapossessão ética das vozes que convoca. As personagens não são títeres nem marryonettes de alguma cabeça de congro descarnado, pescada num charco de provérbios sonambúlicos; nem de alguma carminativa sentença obliterada do calhamaço de algum grossista de requeijão; nem da iluminação ébria de um grosso. Transvia-se a palavra, na emissão descontínua mas clara de quesitos de dimensão filosófica, de preliminares noológicos, sem os quais não é possível uma abordagem significativa: refrigério compensador, esta brisa lúcida de Cassandra que se prodigaliza ao arquipélago fractal. A forma de expressão de Cassandra, o seu tom, são sibilinos. Em borbotom, não sentido é já excesso de sentido: lá se desloca a casa vazia, o lugar do morto, a palavra-mala, o objecto=x: “o que tem identidade por estar ausente dessa identidade; e lugar, por se deslocar em relação a qualquer lugar”.

in Heurética, Dezembro, 2006

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