quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Natal no Serviço










(para os actores)

PERSONAGENS:
O utente anterior, na fila de espera, a Renata e a Lílite –
Renata, uma amiga da Lílite –
Lílite –
Um funcionário do Guichet –
Dr. Otto Rank –
Drª. Melanie Klein, a Directora do Serviço –
Dr. Sigmund, o chamado Dr. EstranhoAmor –

CENÁRIO:
Dividido em três áreas. Da direita para a esquerda, a primeira área com um átrio que comporta um pórtico, encimado por um dístico – "Serviço de Psiquiatria Imaginarium", e um guichet. Na segunda área – ao centro, englobando a tela –, um corredor em perspectiva, com três portas, do lado esquerdo. À esquerda, a terceira área: uma área isométrica de exíguas e cúbicas salas-consultórios.

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(para o público)

(aparece na tela o seguinte título, durante um espaço de tempo)
Lílite e o seu Destino – 1º Acto – de Jorge Taxa

(seguidamente, aparece na tela o cenário contido, que faz parte do restante papel-cenário do palco)

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(No átrio estão pessoas na fila de espera. No segundo lugar, estão duas amigas. Após o utente anterior ter sido atendido, recebido um recibo e uma receita, e tendo ido embora, é a vez delas)

Renata – Olá, bom dia. Se faz favor, diz-me se aqui é o Serviço de Psiquiatria Imaginarium?
O Funcionário do Guichet – É sim.
Renata – Podia, então, dizer-me se a utente Lílite tem agora consulta?
O Funcionário do Guichet – Deixe-me ver aqui... (procura no computador) Ahh... Pois. Tem sim, tem agora às dez horas.
Renata – Obrigada. (fala para a amiga) Estás a ver, Lílite. Tens consulta agora, às dez. Vamos sentarmo-nos ali, na sala de espera. Guiamo-nos pelo relógio.

(As duas amigas sentam-se na sala de espera, enquanto outras pessoas – figurantes – estão sentadas nas cadeiras da sala de espera do átrio. Dois doutores – a Drª Melanie Klein e o Dr. Sigmund – vêm, do exterior do Serviço, de encontro a outro – o Dr. Otto Rank, que tinha estado sempre no átrio a ler uma revista. Os três doutores cumprimentam-se)

Drª. Melanie Klein – Olá, bom dia, Dr. Otto. Então, como vai isso?
Dr. Otto Rank – Olá, bom dia, Dr.ª Melanie Klein. Tudo bem, obrigado.
Drª. Melanie Klein – Hoje, apresento-lhe um doutoríssimo chamado Dr. Sigmund, o Dr. EstranhoAmor.

(Otto e Sigmund cumprimentam-se quase em uníssono) – Olá, bom dia.

Drª. Melanie Klein – Dr. Otto, tem agora alguma consulta com pacientes?
Dr. Otto Rank – Tenho, agora, na Sala Quinze. Por sinal, chama-se Lílite…
Drª. Melanie Klein – Óptimo! Então, o Dr. Sigmund, o chamado Dr. EstranhoAmor, vai guiá-lo na sua consulta. Ele poderá exemplificar algumas das suas teorias muito avançadas. Bom dia, Dr. Otto e Dr. Sigmund. Bom trabalho aos dois.
Dr. Otto Rank e Dr. Sigmund (ao mesmo tempo) – Bom dia, Drª. Melanie.

(Despedem-se, ficando o Dr. Otto Rank e o Dr. Sigmund, e saindo Melanie Klein de cena)

Dr. Otto Rank – Venha, Dr. Sigmund. Vai acompanhar-me na consulta da Lílite.
Dr. Sigmund – Muito bem.

(Entram para uma das salas, muito apertados, e sentando-se, encolhem-se com os cotovelos na ortogonal)

Dr. Otto Rank – Faça o favor de entrar, paciente Lílite.

(Entra Lílite para a sala, onde se encolhe)

Lílite – Olá. bom dia!... Ui! Aqui está tão apertadinho… Que espaço mais pequeno!
Dr. Otto Rank – Bom dia, Lílite. Se calhar, tem razão...
Dr. Sigmund – Deixe-me prosseguir, Dr. Otto. Ouça, Lílite, por acaso você queria a consulta num estádio?
Dr. Otto Rank – Até podia ser. Podia ser uma terapêutica peripatética… O Dr. Sigmund sabe – aquela actividade do Aristóteles e dos discípulos do Liceu em que o ensino se fazia caminhando ao ar livre... Terapêutica peripatética: que acha?
Dr. Sigmund – Peri… Peri… Eu acho é que o meu caro Dr. está é a precisar da Ris… da Ris... Peri… Dona. Mas diga-me lá, Lílite, o que é que a traz por cá? Conte-nos algo…
Lílite – Às vezes, ando com saudades da era hippie
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto: hippie – já está visivelmente a falar do “pipi”. A sexualidade latente…
Dr. Otto Rank – Ela só estava a dizer que gosta dos hippies…
Dr. Sigmund – Mas diga-me mais, Lílite. O que é que faria nessas festas dos hippies?
Lílite – Oh! Sei lá, dançava, divertia-me com os meus amigos: com o José, com a Marília, com o Alberto, com a Renata…
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto: “Renata”. O que é que tira daí? Renata? Renascida! Num instante, passou da sexualidade para o nascimento…
Dr. Otto Rank – Mas ela só estava a dizer que tem uma amiga chamada Renata…
Dr. Sigmund – Prossigamos. O que é que sente, Lílite, ultimamente?
Lílite – Oh! Sei lá, sinto uma grande dose de desejo.
Dr. Sigmund – Mas sente falta de quê?
Lílite – Eu? Não sinto falta de nada. Sinto só muito desejo.
Dr. Sigmund – Mas sente falta de quê, propriamente?
Lílite – Não sinto falta de nada, já lhe disse. Sinto… desejo!
Dr. Sigmund – Mas sente falta de quê?!
Lílite – Nada a menos! Desejo a mais! Estou até muito bem saciada: comi há um bocado uns espinafres como o Poppey...
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto. Poppey é a figura paterna, os espinafres representam a mãe e, a carência que ela sente, remete para si própria…
Dr. Otto Rank – Mas ela só disse Poppey como há muitas outras coisas no mundo…
Dr. Sigmund – Já estou a ver que lhe fazia falta uma boa dose de Ziprexa, Dr. Otto. Prossigamos. Lílite, conte-me os seus últimos sonhos.
Lílite – Sonhei há poucos dias com uns lobos…
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto: o lobo – uma figura propriamente de Elektra, "O Capuchinho Vermelho"…
Dr. Otto Rank – Mas ela não disse um só, mas vários lobos!…
Dr. Sigmund – Já vi que, ao Dr. Otto, lhe faz falta o Seroquel.
Dr. Otto Rank – Dr. Sigmund, pois, em si, acho que há uma descompensação de Haldol!

(Os dois voltam-se de costas um para o outro e assim ficam. Lílite acaba por sair do minúsculo consultório, suspirando, incompreendida. No caminho de saída encontra a amiga)

Renata – Então, Lílite. Correu bem, a consulta?
Lílite – Engraçada, Renata. Lembras-te das nossas festas hippies?
Renata – Claro que me lembro. Woodstock! Bob Dylan! Jimmy Hendrix! Janis Joplin! Led Zeppelin! Jefferson Airplane! Donovan! Olha, que tal à tarde vermos mais daqueles desenhos animados do Poppey que tenho gravados em minha casa? Podemos alterná-los com leituras de Kafka, agora que te dás ao vegetarianismo.
Lílite – E que é que isso tem a ver com o meu pai? Ou com a minha mãe? Ou até... comigo? Não achas que o vegetarianismo já existia antes de mim?
Renata – Claro que acho! Mas não estou a ver o porquê de estares a falar nos teus pais. Que é que se passa?
Lílite – Nada, nada...
Renata – Vamos lá?
Lílite – Não posso... Tenho ainda de tomar o injectável.
Renata – Façamos, então, o seguinte. Tu vais tratar disso e eu vou indo, pois é útil antecipar já umas arrumações que tenho em casa para fazer. Encontramo-nos depois. Até logo, Lílite.
Lílite – Até logo, Renata.

(Sai Renata de cena. Depois, sai Lílite. Aparece na tela, retroprojectado, o seguinte dizer)

FIM DO 1º ACTO

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(para os actores)

Personagens:
Dr. Otto Rank –
Dr. Sigmund –
Drª Melanie Klein –
John Nash –
Lílite –
Renata –
Dr. Felix Guattari –

Cenário: O mesmo de Lílite e o Seu Destino – o átrio com o pórtico a dizer "Serviço de Psiquiatria Imaginarium", o corredor, as salas – o Serviço.

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(para o público)

(seguidamente, aparece na tela retroprojectado o seguinte título)

2º Acto
– NATAL NO SERVIÇO –
Autoria das Acções – Colectiva
Coordenação Escrita: Jorge Taxa

(volta a aparecer na tela retroprojectado o cenário contido)

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Cena 1

(estão o Dr. Otto Rank e o Dr. Sigmund, Dr. EstranhoAmor, sentados cada um em sua cadeira da Sala Quinze, com ar de zangados, voltados de costas um para o outro, até que fala o Dr. Otto Rank)

Dr. Otto Rank – Dr. Sigmund, veja lá a que ponto chegámos! Mas, sugiro-lhe que nos portemos como duas pessoas decentes e profissionais competentes, e não levemos a sério uma ou outra discussão. Enfim, isso é muito natural no nosso meio...
Dr. Sigmund – Sim, concordo. Afinal, eu ultimamente tenho dado muito pouca atenção ao Acaso, quase não acredito nas coincidências... O Dr. Rank sabe, os lapsus perturbam-me..
Dr. Otto Rank – Mas não acreditar que há coincidências – isto é, não acreditar no Acaso –, pode ser um início, que pode também ser um indício, de um pensamento psicótico...
Dr. Sigmund – Tem razão, Dr. Rank. Ando perturbado. Tendo a familiarizar, a sexualizar tudo... A atribuir à falta – ou, como dizem os franceses, à manque – e às coincidências, e aos lapsus, um sentido, demasiado pesado...
Dr. Otto Rank – Hoje, é mais comum-mente reconhecido, na disciplina psiquiátrica, que o delírio não tem origem, necessariamente, na triangulação edipiana, mas é mais propriamente histórico-mundial, feito de mitos e heróis. E sabe-se que o desejo é positivo, não correspondendo a "uma carência"...
Dr. Sigmund – Peço-lhe mil escusas, pela minha inactualidade.
Dr. Otto Rank – Mas, veja! O Dr. Jacques Lacan propôs um retorno às suas teorias – as freudianas, meu caro Dr. Sigmund –. Ele está ali (aponta), na Sala Seis, com a utente Carole (aponta), esta bela rapariga, do filme de Roman Polansky: ela sente, antes de mais nada, "repulsa"...
Dr. Sigmund – Vejo que desta Sala do Serviço de Psiquiatria Imaginarium dá para nos apercebermos do que se passa no interior de cada um dos consultórios que o constituem. É engraçado! Só vemos as cabeças!
Dr. Otto Rank – Sim, esta arquitectura do Serviço Imaginarium é de um arquitecto holandês da vanguarda, em que as paredes são todas de vidro e insonorizantes para o exterior. Tudo se passa como se fosse uma arquitectura transparente, cristalina – como aquele político português que escreveu "O Partido Com Paredes de Vidro".
Dr. Sigmund – Ah! Sim, claro, o revolucionário Álvaro Cunhal. Mas aqui, no Serviço Imaginarium, vejo que tem doentes muito famosos. Vejo ali (aponta) Vincent Van Gogh.
Dr. Otto Rank – Sim, acompanha-o (aponta) o Dr. Gachet. Não são só utentes famosos, todo o pessoal médico é constituído por altas eminências da psiquiatria. Quanto aos utentes, encontra-os – o Dr. Sigmund – não só reais, mas irreais, pois a nossa ciência permitiu encarná-los. São saídos de filmes e de obras da literatura.
Dr. Sigmund – Caracteres, sejam quais forem: pessoas reais, personagens ficcionais...
Dr. Otto Rank – Sim. Por exemplo: ali, nas salas laterais, encontra também (aponta) o utente Norman Bates – do filme "Psycho", de Hitchcock –, fatalmente determinado pelo carácter da sua mãe possessiva, acompanhado pelo sexólogo (aponta) Doutor Alfred Kinsey.
Dr. Sigmund – Ah, sim! O do célebre "Relatório"...
Dr. Otto Rank – Mais: (aponta) o utente Truman – do filme "Truman Show", de Peter Weir –, supostamente saído de um show montado por um arquitecto, acompanhado pelo reflexologista (aponta) Doutor Ivan Pavlov, que está a estudar os seus "reflexos condicionados".
Dr. Sigmund – Sim, vejo ali, na Sala Oito, também, (aponta) o meu colega da "psicologia analítica", o Dr. Carl Jung e, mais acima, na Sala Quatro, (aponta) o colega da "psicologia individual", o Dr. Alfred Adler. Quem é o seu paciente?
Dr. Otto Rank – É João de Deus (aponta), alter-ego de João César Monteiro, vindo das "Recordações da Casa Amarela".
Dr. Sigmund – Diagnosticado com "esquizofrenia paranóide", temos ali – já o conhecia –, (aponta) acima de Adler, na Sala Dois, o utente Trelkovsky. É um inquilino que julga que os vizinhos estão a coludir para o seu suicídio, transformando-o na anterior locatária.
Dr. Otto Rank – Isso lembra-me uma história...
Dr. Sigmund – Sim, claro. É a inesquecível trama do filme "O Inquilino", de Polansky. E nestas salas à direita?
Dr. Otto Rank – Aqui, na Sala Nove, encontra o poeta-dramaturgo francês, (aponta) Antonin Artaud, acompanhado pelo seu Doutor Ferdière (aponta). Ferdière também é o médico da conceituada poeta-artista plástica Unica Zurn (aponta)...
Dr. Sigmund – Mas ela está a ser acompanhada actualmente, nesta Sala Sete, pelo (aponta) behaviorista – que eu conheço – John Watson, o qual tentará basear-se somente nos comportamentos da utente. E nesta (aponta)? A Sala Cinco?...
Dr. Otto Rank – Aqui, em cima, na Sala Cinco (aponta), encontra o utente-poeta português, Ângelo de Lima, com o Doutor Miguel Bombarda (aponta): o qual achou, na sua fisionomia, um enorme filão psiquiátrico...
Dr. Sigmund – Aqui, em baixo (aponta), ainda vejo a conturbada – devido a excesso de álcool – Amy Winehouse. E quanto àqueles, ali, à esquerda, à espera levantados, quem são?
Dr. Otto Rank – São, ali (aponta) R.P. McMurphy, que diz estar "Voando Sobre Um Ninho de Cucos...". A seguir (aponta), Camille Claudel, escultora promessa de Rodin...
Dr. Sigmund – Irmã do fluente Paul Claudel. Aquele conheço (aponta). É Bartleby, saído da pena de Herman Melville, que antecipa todas as frases com a palavra "preferia". Restam-nos os doentes da sala de espera. Quem são?
Dr. Otto Rank – Temos ali, da esquerda para a direita, sentados, (aponta) o utente James Cole, que diz ter "Doze Macacos". (aponta) A utente Ida Dalser, que diz ser a mulher de, e ter um filho de, Benito Mussolini.
Dr. Sigmund – Ah, sim! Marco Beloccio conta-nos a história dela no filme "Vincere"...
Dr. Otto Rank – Pois. E temos, a seguir (aponta), a utente Zhanna, apaixonada por Bryan Adams.
Dr. Sigmund – Andrey Konchalovskiy faz dela a protagonista da pitoresca "Casa de Loucos"...
Dr. Otto Rank – E, por fim, (aponta) a utente Janet Frame, que tenta ser "Um Anjo À Nossa Mesa".
Dr. Sigmund – Carácter ficcional surtido da visão já pós-modernista de Jane Campion.
Dr. Otto Rank – Mas, Dr. Sigmund, aproveito e chamo agora o próximo utente a ter consulta. Que diz?
Dr. Sigmund – Claro, força nisso!
Dr. Otto Rank – Chamo à Sala Quinze o utente John Nash.

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Cena 2

(entra John Nash para a Sala Quinze)

Dr. Otto Rank – Olá, bom dia, John Nash.
Dr. Sigmund – Olá, bom dia, senhor John Nash.
John Nash – Olá, bom dia. Happy Christmas, como se diz na minha terra!
Dr. Otto Rank – Bom Natal, senhor Nash! Então? Diga-nos lá que tal é que correm as coisas...
John Nash – Correm bem, Doutor. A minha matemática está cada vez mais evoluída.
Dr. Sigmund – Ah! O senhor Nash gosta de matemática?
John Nash – Sim, é a minha área. Mas há jogos interessantes e também gosto de jogos. Por exemplo, como considerar – como uma poetiza-pensadora e deputada-apresentadora portuguesa já falecida, chamada Natália Correia – que "Um mais um é igual a um".
Dr. Sigmund – Eu também gosto bastante de matemática. Sugiro, John Nash – para fazer uma demonstração dos meus conhecimentos e deixá-lo mais à vontade, de modo a explanar-se na conversa –, que eu ponha agora em prática um verdadeiro ilusionismo, ou uma magia, ou uma prestidigitação, ou um truque matemático. Pode ser?
John Nash – Pode, claro, estou curioso. Força nisso!
Dr. Sigmund – Vou solicitar aos espectadores desta peça teatral, cada um à vez, um algarismo.
(o Dr. Sigmund procede em conformidade, solicitando aos espectadores “um algarismo?”)

Primeiro espectador – (de 0 a 9) a.
Segundo espectador – (de 0 a 9) b.
Terceiro espectador – (de 0 a 9) c.
Quarto espectador – (de 1 a 8) d.

(o Dr. Sigmund escreve num papel, para todos verem, "abcd", mostrando ao público. E faz, em seguida, de cabeça, a conta abcd – a)

Dr. Sigmund – Então, eu digo que a,bcdbcdbcdbcdbcd... = abcd – a /999

(confirma-se na calculadora do computador retroprojectada)

(o Dr. Sigmund faz de cabeça a conta abcd – ab)

Dr. Sigmund – Agora, digo que ab,cdcdcdcdcd... = abcd – ab /99

(confirma-se na calculadora do computador retroprojectada)

John Nash – Parabéns, Dr. Sigmund. Sinto-me, assim, mais confortável, no meio de gente tão racionalista – dado que a matemática também é uma espécie de lógica...
Dr. Otto Rank – Então, diga-nos, John Nash. Por falar em "lógica"... Como vai aquela história da "perseguição dos Serviços Secretos"?
John Nash – Ah!... Quanto a isso, esteja descansado, Doutor. Fiz o meu insight! Compreendo agora que padeço naturalmente de um desiquílibrio, a nível de dopamina, no cérebro, e que, se não for suprido artificialmente com um neuroléptico, faz-me descompensar e delirar. É a "boa nova" natalícia que tenho para transmitir ao Doutor.
Dr. Otto Rank – Isso parece-me um progresso, uma evolução. Parabéns, Nash! E quanto à saúde física? A idade apoquenta?
John Nash – Um achaque ou outro, mas nada de especial. Vai tudo bem, obrigado.
Dr. Otto Rank – Já tomou o injectável?
John Nash – Já, Doutor. Encontrei lá a minha amiga Lílite...
Dr. Sigmund – E quanto aos sintomas secundários: quero dizer, da medicação...
John Nash – Tudo bem, Doutor. Menos tremores e menos acatísia.
Dr. Otto Rank – Então, vejo que só nos resta desejar-lhe um Happy Christmas, e... Quer juntar-se a nós e almoçar connosco?
John Nash – Sim, mas concerteza. Já estou com apetite.
Dr. Otto Rank – Então, vamos a isso. Vamos, Dr. Sigmund?
Dr. Sigmund – Sim, um simpósio – ou banquete, para os antigos Gregos – natalício. Vamos!

(saem os doutores Otto e Sigmund, e John Nash, da Sala Quinze. Entretanto, Lílite, que havia entrado em cena, dirige-se de encontro a eles. Encontram-se os quatro à frente da tela, a meio do caminho. Fala o Dr. Otto)

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Cena 3

Dr. Otto Rank – Olá, Lílite! Ainda por aqui? Queríamos pedir-lhe desculpa por, há pouco, termos sido um tanto incompreensivos consigo...
Lílite – Não faz mal, Doutor. Todos temos os nossos dias. Sei que os médicos não são feitos de pedra, nem de ferro, nem de plástico, nem de nada inorgânico... São pessoas como nós!
Dr. Sigmund – Obrigado pela atenção, Lílite, no que toca, principalmente, à minha parte...
Dr. Otto Rank – Mas com proposições psicológicas tão interessantes e tão espirituosas, só posso convidar também a nossa paciente, Lílite, a juntar-se a nós e almoçar connosco, aqui, na Cantina do Serviço Imaginarium. Que diz, Lílite?
Lílite – Por mim, pode ser. Tudo bem!
Dr. Otto Rank – Então, assim seja. Vamos ao almoço!

(passam os quatro, por assim dizer, a "caminhar parados", como se estivessem a pisar uvas, frente à tela, a meio da boca de cena. Duas pessoas vestidas de funcionários do Serviço trazem, para esse mesmo centro do palco, para próximo dos quatro, uma mesa, coberta por uma toalha, com víveres natalícios e talheres sobrepostos. Os quatro vão buscar as três cadeiras da Sala Quinze, e uma cadeira da Sala de Espera, e instalam-nas em redor da mesa, sentando-se nelas. Fala o Dr. Otto Rank)

Dr. Otto Rank – Então, Dr. Sigmund, Lílite e John Nash. Que acham desta pantagruelice? Ao dispor da nossa... gulodice?!
Dr. Sigmund – Está muito bem! Parabéns ao Serviço Imaginarium! Eu gosto do Bolo-Rei!
Lílite – Eu prefiro estes mexidos!
John Nash – Para mim, três rabanadas com mel!
Dr. Otto Rank – Eu vou pelo arroz-doce!... Eu consideraria que, os parabéns, o Dr. Sigmund deve dá-los, por esta data, não ao Serviço Imaginarium, mas a Jesus e a todos os que nasceram pelo Natal. Mas, vejam: a Drª. Melanie Klein está a chegar...

(irrompem em cena a Drª. Melanie Klein com a Renata, que entretanto pegam em duas cadeiras, das da sala de espera, e juntam-se à mesa)

Drª. Melanie Klein – Olá, boa tarde a todos. Peço desculpa pelo atraso...
Dr. Otto Rank – Que não foi quase nenhum! Sugiro que se junte a nós. Vejo que traz uma companhia...
Drª. Melanie Klein – Sim, é a Renata, que estava à sua procura, Lílite, e eu disse-lhe que devia andar ainda por aqui. Afinal, encontrámo-la!
Dr. Otto Rank – Cinco é o número de letras de Jesus; seis é o número de letras de Cristo. Já somos seis à mesa...
Drª. Melanie Klein – Não, Doutor Otto! Sete! Sete, que é o número de letras de Emanuel. E o sétimo – que deve estar quase a chegar – é o Doutor Felix Guattari, vindo da Clínica La Borde...

(irrompe, entretanto, em cena o Dr. Felix Guattari)

Dr. Felix Guattari – Estão a falar em mim? Olá, boa tarde!
Drª. Melanie Klein – Olá, boa tarde, Doutor Felix! Como vai, esse "Chaosmos"? E os seus colegas da antipsiquiatria, o Doutor David Cooper e o Doutor Ronald Laing?
Dr. Felix Guattari – Ficaram – como já lhe tinha dito – num almoço natalício com o filósofo Michel Foucault. Debaterão, decerto, sobre a História da Loucura.
Dr. Sigmund – Gostava de agradecer-vos a todos, meus amigos. Lembro-me – agora, que é Natal – de um cântico da minha infância...
Dr. Otto Rank – Sugiro que nos dê o mote inicial e, a seguir, cantemos todos juntos.
Dr. Felix Guattari – Por acaso, este Serviço Imaginarium, tem um piano? Eu poderei dar as tónicas...

(trazem um teclado para um local do palco apropriado e aparece, retroprojectada do computador, a seguinte letra do tema "Os Pais Natais", do album "Os Amigos de Gaspar", de Sérgio Godinho)

"Já que é já Natal, –
Se um Pai Natal houver –
Mais que dois ou três, então, à vez –
Podemos ser, sei lá –
O Pai Natal sempre de alguém –
De quem não tem direito ao seu presente –
Resplandecente..."

Dr. Sigmund – (canta) Já que é já Natal, se um Pai Natal houver – mais que dois ou três, então, à vez – podemos ser, sei lá – o Pai Natal sempre de alguém – de quem não tem direito ao seu presente – resplandecente...

Todos – (cantam) Já que é já Natal, se um Pai Natal houver – mais que dois ou três, então, à vez – podemos ser, sei lá – o Pai Natal sempre de alguém – de quem não tem direito ao seu presente – resplandecente...

FIM

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