Zeru Phainomenología

Imagem de Renato Ferrão


O Zero Como Signo

Zero” é antes de mais um vocábulo veneziano, do qual surtiu o francês “zéro” e em seguida o nosso luso “zero”. Há assim, pois, alguma mistificação literária no Zeru do título deste ensaio.
Zeru seria próprio de um latim científico post mortem, já que o mesmo consistiria numa (re)transposição linguística, para o latim (científico), do veneziano “zero”, sendo esta – sempre desc(end)endo na etimologia – uma síncope do latim antigo “Zephyru”, por sua vez, a transposição romana do étimo original grego Zεφυρoς”.
Mas, para Gregos e Romanos, Zéfiro não quis dizer o que ainda não podiam conceber – o zero –, mas sim um vento que era simultaneamente um deus, ou vice-versa. Não há, aliás, representação para o zero na numeração romana.
Ora, se na Hélade e em Roma não se concebia ainda o zero, isso não implica que já não se concebesse o vago (vacuu), o vazio (vacigo) e o nada (nihil). O que não se tinha dado ainda era a reificação desse nada, desse vazio, num número como os demais, chamado por um nome e representado por um símbolo.
Adianta-se que, a partir de Zenão de Eleia e por durante muito tempo, essa pragmática hipostasiação científica do nada se revelou numa paradoxal aporia intelectual bastante difícil de superar – algo como a posterior irrupção dos números imaginários no âmbito epistemológico (conceber i, i.e.: “raiz de menos um”) –.
Só com esta pequena porção de preliminares semiológicos, e já temos – para o escopo lusófono – um sem-número de equívocos derivados do amassar e do conseguinte fundir, sintópicos e sincrónicos (da geografia e da história), contidos no fenómeno semiótico “zero”.
Como aparece dado, na ordem linguística, o zero? Como palavra, como numeral – e, ainda aqui, uma nova dificuldade, contanto que, como veremos adiante, rigorosamente, essa palavra, esse numeral, devia ser, não “zero”, mas “cifra” –. Dizia-se, como palavra/numeral, e essa palavra, como se viu, é uma mediata síncope veneziana do original vento-deus/deus-vento da Grécia Antiga. Mas também como símbolo – o 0 –, e esse símbolo já representa outros lugares, outros tempos – daí a hibridez do sincretismo semiótico.
Pois 0 é um símbolo árabe que foi intro(tra)duzido por Leonardo Fibonacci na Europa, muito tardiamente, no século XIII. As pesquisas do zero como functivo matemático, e sua admissão nos sistemas numéricos, remontam a três eclosões espontâneas – descobertas ou invenções? –: muito antes, talvez por volta do século VIII a.C., simultaneamente na Babilónia, nos hindus e, do outro lado do oceano Atlântico, na civilização maia.
Ora, os árabes têm a sua própria maneira de nomear o vazio: dizem “sifr”, de onde deriva o português “cifra” – a qual seria, sim, como foi supradito, a ortodoxa nomenclatura de 0 –. Na álgebra, o zero dispõe, aliás, de uma formidável eficácia equacionativa como cifra. Mesmo no sistema decimal indo-arábico de numeração, que hodiernamente o planeta utiliza, o zero como símbolo, levou os seus quatrocentos anos a realizar-se.
Em todo caso, há uma relação de proximidade na síncope veneziana do nome do vento-deus/deus-vento greco-romano. Na realidade, se, no pré-socratismo, Anaxímenes tinha trans-substanciado o apeiron de Anaximandro para a (im)palpabilidade de um elemento com o mesmo estatuto de proeminência conceptual e de constituição paralela como causa prima ou causa causans de todas as coisas – referimo-nos, como é consabido, ao ar (tal como Tales fizera com a água, Heráclito com o fogo e Empédocles, depois, com todos os elementos, incluída a quintessência éter) –... O que era, então, para os Gregos e para os Romanos, – o que explicará subsequentemente que os venezianos tenham tirado “zero” de “zephyru” –; o que era, dizíamos, o ar para eles? Ainda demasiado nada?
Remontemos a Zéfiro. Ora, Zéfiro já é um ar que se move. Adquire ou manifesta uma imponderável leveza do ser. Ele já é o zero-algo, o zero hipostasiado, o zero que voa. Porque ser e estar – distinção linguística no âmbito do perspectógrafo lusófono que os anglófonos subsumem a to be e, os francófonos, a être –; ser e estar, dizíamos, correspondem a uma ontologia ancilosada e exangue, de beatos quietistas e caras-pálidas sedentários.
Já esta concepção voejante revela a atlética e agonística saúde de então: a exposição permanente ao ar livre, à brisa suave e benfazeja, ao vento de Oeste, filho da Aurora e anunciador da Primavera – tudo isto, que era Zéfiro –. Vê-se: ainda a aritmética era a da adição – o zero mantinha-se ao nível de um elemento neutral, cordial, sociável, com o peso emulatório de uma... ligeira aragem! Não se considerava ainda a absorvência de uma tempestade – que repunha as coisas em nada –; nem podia adivinhar-se a decuplicação que agora produz no algarismo à esquerda; nem sequer conceber-se que, algo dividido por zero, ou então elevar o zero a zero, seria como entrar... nos infinitos e antinómicos pulverizares da razão pura; ou então recair... no indeterminado!
Enfim, por seu lado, o Mito descreve-o de várias maneiras. Já em Roma, Apuleio personifica-o a servir Eros, levando Psiquê até à sua morada. A extensão e mais uma vez a extensão! Pois, tanto Gregos como Romanos, tinham ficado sub specie aeterni irritadíssimos, desesperados até, com a inacessibilidade com que se deparavam ante o radicalismo monista e estático parmenidiano do Ser e subsequentes paradoxos de Zenão de Eleia. Não se ficava frustrado ao dispensar-se – contra todas as aparências e contra toda a empiria – de uma assentada, da extensão e do movimento? Não haveria um empobrecimento do capital vital ao reduzir-se toda a sapiência a uma única asserção: “O Ser é”? Ou, simplesmente, “É”?
Conquanto não pudesse afirmar-se de Parménides e de Zenão “niilistas” (como se disse de Górgias), os Gregos e os Romanos – aparte os eleatas – não puderam dispensar a sua querida extensão, nos seus positivismo e empirismo avant la lettre, em que baseavam o seu existir como num wittgensteiniano facto espácio-temporal. Por isso, afirmavam veementemente ex nihilo nihil fit! “Do nada nada pode surtir”!

O Zero Como Functivo

Só muito recentemente nos acostumámos, ou vamo-nos acostumando, a pensar de um outro modo que o dos Antigos. Isto porque, afinal, o Universo teve um... começo... E nasceu do... nada! Tal é o paradigma hodierno que nos desengana dos Antigos: uma faísca, o Big-Bang...
Na realidade, não foi Cauchy, no Oitocentos, mas Godel, no século que passou, que logrou (a)barcar e dom(in)ar o diabolu in mathematicis introduzido pelo paradoxo de Zenão, condicionando-a a uma incompletude se consistência, ou a uma inconsistência se completude, como a priori epistemológicos sine qua non do seu funcionamento. Estas conclusões integram a subversão dos limites cauchyanos – os quais, por sua vez, (a)barcavam e (com)preendiam o Cálculo e a Análise –; essa subversão que foi profetizada em The Analist (1734), de George Berkeley – ou a análise da Análise (leibniziana) – e que foi realizada, já no Novecentos, pela non-standard analysis e pela eclosão dos números surreais, super-reais e hiper-reais.
Curiosamente, Berkeley – outro dos homini religiosi, parente próximo de Parménides – queria levar a brasa à sua sardinha: criticar Descartes pela sua res extensa, e refutá-la, a ela e, por consequência, à matéria, como meio de retirar o solo às intrusões materialistas e ateístas. “Não transformo as coisas em ideias, mas as ideias em coisas”, disse Berkeley, primeiro refutando a opinião segundo a qual existem outras substâncias para além das espirituais, para em seguida reflectir sobre estas mesmas substâncias espirituais, – projecto onde encontrou diversas dificuldades, que chegaram a raiar as trevas do... misticismo?
Mas Berkeley, através do seu artigo de fé “Esse est percipi aut percipere”, detectava, através da finura do seu imaterialismo, o grosseiro erro e a falta de rigor da matemática – falamos sempre dela como a prima-dona da Opera das ciências, sobre a qual todas as outras se estruturam –. A matemática não pode passar sem a extensio para desenvolver-se! Não pode passar sem um bocado... Um bocado maior que zero. Porque não consegue construir a partir do zero. Porque ainda se baseia no ex nihilo nihil fit!
Soube Cauchy (re)solver o problema? Cauchy – mais um papa-hóstias –, vi formae da mais formidável das falácias – contra Zenão, provar a extensão por meio da... extensão! –, inverte o problema como num caleidoscópio e dá vazão à continuidade do sistema real. Apenas que, para a flecha atingir a maçã, e mesmo, melhor, para a flecha poder chegar a sair do arco de Guilherme Tell, então matematicamente somos forçados a igualar 0,99999... (até ao infinito) a 1, – ou, em simbólica apropriada, a igualar 0,(9) a 1 (ou 1,[9] a 2; ou 2,[9] a 3 – e por aí adiante...) –.
Saber-se qual a diferença, ainda igual a zero, que reside entre o(s) supradito(s) inteiro(s) e a(s) supradita(s) dízima(s) infinita(s) periódica(s), e obtemos o rebater da ensombrecida incognoscibilidade do adstrito ao zero (do anterior e esterilizante paradigma “Do nada nada pode surtir”): queremos assinalar aqui o número – supomos surreal – 0,(0)1, como o número que, sendo ainda igual a zero, é subsequente do zero. Surreal, porque... infinito-finito? Um novo alogon? Chamamos-lhe, por sinal, O Ínfimo.
0,(0)1 – não se pode dizer que este infinitésimo surreal tenda para zero, – não!, ele atinge mesmo o zero, iguala-se a ele – o novo sistema da(s) máquina(s) de guerra nómada(s) e desterritorializante(s) é liso, transversal e rizomático, não denota estrias como a Máquina de Estado, sedentária e territorializante, paranóica e arborescente. “O conceito é vicinal” e os vizinhos cumprimentam-se, formam agenciamentos, já toda uma produção envolvida – caso para dizer que o zero medrou (algo), que o zero emprenhou, que se desmultiplicou...
Suspendamos para já estas intrusões filosóficas para nos atermos ao zero como functivo científico. Voltando ao tempo de Parménides e Heráclito, diremos que o primeiro refuta a extensão, a pluralidade e o movimento para (e)levar o princípio de não-contradição até às suas últimas consequências – que o ser é e que o não-ser não é e que, por isso, (só) o Ser é –; e diremos que o segundo se baseia precisamente na extensão, na pluralidade, e no devir, (e)levando o princípio de contradição até às suas últimas consequências – que o ser é e não é ao mesmo tempo –.
Diremos que é a partir deste último escopo – o escopo heraclitiano – que se coloca toda a ciência actual, com a(s) arauta(s)-aeronauta(s) matemática(s) na vanguarda livre e na retaguarda estruturante. Mesmo para igualarmos 0,(9) a 1, ou para chegarmos a conceber o surreal 0,(0)1, tínhamos sido epistemologicamente coarctados a admitir um bocado de extensão, a subsequente pluralidade e simultaneamente o subsequente devir, como os a priori sine qua non que Godel soube reconhecer como axiomáticos.
Parménides, Berkeley, Cauchy, Bergson, Godel – eis uma plêiade de ilustres homini religiosi, todos eles – à excepção de Cauchy – a quererem levar água ao moinho original parmenidiano da não-contradição, o A=A (que exclui qualquer B ou C, qualquer pluralidade), que representa o lugar do espírito, o lugar do homem infinitamente introspectivo, o lugar de Deus.
No caso de Bergson, foi o apelar para a intuição da duração contra a “filosofia dos conceitos”; para a concepção do tempo como não necessariamente derivado da matematização do espaço – sempre a correr o risco de um anacronismo precoce ao entrar em conflito aberto com a(s) relatividade(s) einsteiniana(s) e com a geometria quadrimensional de Minkovski –; em suma, sem dúvida, para um novo espiritualismo que só pode ser dado pela intuição e que não pode ser paulatinamente metabolizado por uma sucessão complexa e diacrónica de símbolos e algoritmos – afinal, que valor possuem hieróglifos num papel? Não será, então, denotar algum autismo – Monsieur Bergson –, escamotear que a matemática pode ser um fecundo celeiro de efeitos práticos e que, por exemplo, no âmbito da física nuclear essa pr(agm)ática foi patente nos resultados de Hiroshima e Nagasaki?
Pode haver candura no (ir)risório alvedrio do homo religiosu ante a potência da Bomba de Neutrões, mas Berkeley terá eternamente razão em afirmar que, se e (energia) igual a mc2 e, se por hipótese, e for igual a 41 milhões de joules (aproximadamente o valor energético de uma tonelada de petróleo), então e (energia) também é igual a 40,(9) milhões de joules ou a 41,(0)1 milhões de joules... Também a física se alimenta desta imprecisão, desta falta de rigor, desta imens(ch)urabilidade.
Temos, de novo, de voltar ao tempo de Parménides e de Heráclito, em que o tempo, ele próprio dividido em Chronos (tempo comum), Kayros (tempo propício) e Aion (tempo divino), era considerado cíclico, sendo os ciclos (imemoriais), por sua vez, os de um Eterno Retorno do Mesmo, em que os Antigos julgavam (re)viver exactamente a mesma vida, a mesma experiência, inúmeras vezes ad infinitum. Heráclito ideava mesmo um Grande Ano de transição entre os ciclos, também ele cíclico.
Por isso, interpretou-se mal Nietzsche quando se viu no Eterno Retorno a velha ideia dos Antigos. Bastante lúcido neste ponto, Nietzsche descortinou a estridência da sua formidável descoberta – a do Eterno Retorno do Devir – o Devir é que retorna sempre! Descoberta e, a um tempo, forja de um novo conceito filosófico. O functivo matemático tinha sido explanado, umas poucas décadas antes, como se disse, por Cauchy com o seu 0,(9)=1=1,(0)1 e respectivo corolário lógico A=B=C, o retornar/igualar da diferença – enfim, de novo, o Eterno Retorno do Devir, avant la lettre –.
Nietzsche chegou a procurar em Paris alguém que lhe convertesse o conceito formulado num functivo matemático. Mas tanto o functivo como o conceito introduzem, sub-repticiamente e também antes do seu tempo, a implícita noção de um começo, de um começo de tudo, do tempo e do espaço, do Universo – e, já por outro lado, a noção de que o Universo é um (in)finito que se expande –.
Deriva isto do facto de Parménides e Zenão defenderem a cosmovisão de um ponto estático de Ser, sem extensão nem movimento (puras e simples “aparências”; no sentido kantiano, delírios enganadores dos sentidos) – o que remete imediatamente para um Eterno Retorno do... Mesmo – o ser do Ser! Como o monocórdico e hipnótico mantra hindu Om!...
Mas mesmo Heráclito não soubera pautar a diacronia escatológica do seu Devir, esticá-la toto coelo, senão por uma compositio ritmada com Ciclos do Mesmo; não soubera desaguar numa perene e absurda dissonância atonal esquiva à repetição – ou, no caso de a repetição do motivo ocorrer, ser ela regida unicamente pela cegueira da Tique grega, ou da Fortuna romana, ou do Az-zahar árabe (porque os jogos de azar são os de sorte) – em suma, pelo Acaso – deus-implícito dos partidários da extensão –.
Ora, é o Eterno Retorno do Devir que precisamente refuta o Eterno Retorno do Mesmo (ou ao Mesmo), e só então o Ser se diz do Devir e o Uno, do Múltiplo. A diferença retorna ad aeternum – afirmação nec plus ultra no horizonte do Mecanicismo Probabilista: a de não se poder conceber uma infinidade temporal para trás, sem o qual, por sua vez, não se pode conceber o ter-se chegado ao momento presente; a de ter havido implícito um início espácio-temporal que anuncia o Big-Bang; a de remeter para uma relativa finitude.
Pois, se o mundo era antes delimitado pelas fronteiras da Esfera Celeste, e se essa cosmovisão se alargou aos Pluriversos de Giordano Bruno com a inaudita concepção da infinitização do espaço, já a ciência actual volta a repor a finitude que se expande.
A Termodinâmica, por seu turno, vem apor o functivo entropia do calor às máquinas e ficam assim em causa o motu continuum da Máquina-Universo e o seu próprio Eterno Retorno do Devir. Não deixam as pessoas de morrer, e de morrer de uma vez para sempre; – mas, neste caso, é o Universo que morre... de frio!... Fim do Devir!... A questão parece permanecer insoluta, não se podendo adivinhar se também a expansão (que se alimenta do calor) será ad aeternum. Se, na escala de temperatura Celsius, o 0 assinala o ponto de congelação da água, na escala Kelvin, o 0 é considerado como a temperatura mais fria possível.
Eis, enfim, o que de mais importante do zero como functivo intentámos realçar, o seu ser dado à intencionalidade da nossa consciência, ela mesma um amassar e fundir sincréticos de plurais, irracionais, volúveis e termodinâmicos estad(i)os existenciais da subjectividade constituinte, não sem a redução trancendental e epoché metodológicas implicadas, no que se presume ter sido uma fenomenologia do zero – como antes se delimitou – como functivo científico.

O Zero Como Conceito

Tínhamos terminado o capítulo anterior, referindo afinal o nosso ponto de partida e que intitula este ensaio: Fenomenologia do Zero.
Talvez seja neste capítulo que abre – O Zero Como Conceito – que mais tenhamos que pôr à prova a ductilidade dos nossos pontos de vista, dado que a antitética que reside no próprio título (e que dá nome ao respectivo desígnio) – poderá o nada constituir um fenómeno? Onde aparece o nada? Qual o ser do nada? Como é dado? Serão a atitude e o método husserlianos conciliáveis com a denúncia do “auto-engano” da parte dos niilistas? –; essa antitética, de incompatibilidades evidentes, levanta dificuldades acrescidas, enquanto provoca a própria heterodoxia dentro do âmbito fenomenológico.
O zero como conceito. Como aparece? Aparece como nada? Como nada de filosofia ou como filosofia do nada? Como vazio? Como invisível? Ou, por outro lado, como absurdo? Como loucura? Como um “em vão”? Como vanidade? Como superfluidade? Ou, ainda por outro lado, como ponto de partida? Como começo? Como folha em branco? Como nudez? Ou, ainda por outro, como fim? Como morte? Como escuro? Como sono? Como desmaio? Ou, então, como deserto? Como anarquia? Como recusa? Como corte na… corte? Ou, então, como abandono? Como dissolvência? Como avareza? Como miséria? Como ignorância? Ou, então, como ataraxia? Como epoché? Como neutralidade? Como nirvana? Como satori-zen? Ou, enfim, como abstenção? Como passividade? Como indiferença? Como letargo? Como estagnação? Como lei do menor esforço?
Falemos primeiro do nada arvorado em movimento, com toda a sua legião de mentores, correligionários, activistas, sequazes e até fanáticos. É, portanto, com o niilismo que iniciaremos – e que, por sinal, terminaremos –.
Deve, aliás, antes de mais, assinalar-se um aparte relativo a este niilismo – o qual, através do seu mais eminente e destacado pensador, Friedrich Nietzsche, provoca, dissemos já, aporias metodológicas tais, que se dá a necessária e heterodoxa subversão dos principais artigos de fé husserlianos –. São muitas, as outras correntes do pensamento, que abrigam um certo niilismo em si, ou então, são suas parentes próximas. Vejamos: – não serão o cepticismo (pirronismo), o cinismo, o pessimismo e até o próprio ateísmo, outras tantas formas de negar as atinentes metanarrativas visadas? E, como também já se disse: – não serão, por exemplo, a ataraxia dos cépticos, a dúvida metódico-hiperbólica cartesiana e a própria epoché fenomenológica, uma espécie de grau-zero dos métodos?
Voltando à ideia do zero-filosófico como começo: este mesmo começo não é igual nas várias filosofias e, por seu turno, os próprios filósofos não têm o mesmo conceito de começo, como já haviam (re)esclarecido Deleuze/Guattari em O Que É A Filosofia. Ora, se também aí referem, “Não há nenhum conceito com uma só componente: mesmo o primeiro conceito, aquele pelo qual 'começa' uma filosofia, tem várias componentes, dado que não é evidente que a filosofia tenha de ter um começo e, no caso de determinar um, tem de lhe acrescentar um ponto de vista ou uma razão”, perguntar-se-ia: – redundaria ainda o zero nessa espécie de Corpo Sem Orgãos, de corporeidade a-compósita, sem componentes? Porque aqui afigura-se uma confusão, na noese, que urge deslindar. É que... estamos a falar do zero? Ou, afinal, do um?...
Sucede que a força, que ressalta do senso-comum – o qual abriga a proximidade imediata dos dois valores e torna (ir)risória a sua distinção: contanto que, segundo a doxa e a aparência em que se baseia, isso é devido à apodíctica imensidão que nos rodeia –; essa nefasta força, dizíamos, transgride as suas fronteiras e desterritorializa-se até ao âmbito fenomenológico. Husserl queria, com o seu método, o que julgava uma proeza nunca antes lograda: fazer passar a filosofia do estádio pré-científico ao científico. Será preciso, portanto, voltarmos “às coisas elas próprias”, falando, agora, consequentemente, do zero em contraposição ao um.
E ressalta um primeiro escândalo! Pois, já segundo a lógica bivalente, eles não são nada próximos, – são mesmo... antípodas! Tanto como “falso” (0) e “verdadeiro” (1) são diferentes entre si! Esta história da lógica – que tem as suas origens remotas na sistemática organón(ica) de Aristóteles, e é hoje imperial na cibernética actual – a qual, por sua vez, tanto permite redigir este escrito, como constrói paulatinamente a monadologia leibniziana, e reúne, ao sistema binário, os adequados trabalhos que vão desde Gottlob Frege pelo empíriocriticismo austríaco e britânico fora –; a história da lógica teve sempre, por horizonte, um certo positivismo. Ora, também a fenomenologia se quer anti-especulativa.
 É, então, aqui, que se lançam os dados de um pensar heterodoxo. Para terminarmos com o supradito aparte e voltarmos ao nada constituído num movimento – o niilismo –.
Torna-se primacial que se convoque a própria história do niilismo. Destaca-se, antes de todos, Górgias, “o primeiro niilista da história”. Não que já não houvesse aspectos niilistas no indeterminado apeiron de Anaximandro, no próprio Ser de Parménides, e na assunção do princípio-de-contradição da parte de Heráclito. Mas, a partir de Górgias, o nada torna-se evidente. As antinomias e paradoxos, que encontrávamos no contraditório efésio, raiam agora as margens do absurdo (camusiano ante litteram), tais são os argumentos retóricos desta sofística: para simultaneamente empreender o Encómio ou, então, o Anátema, seja de que asserção se trate, e desembocar no... nada! Note-se o prestimoso e iminente preparo para responder a tudo – tendo por detrás o... nada!
A história continua: os niilistas reaparecem (como tais) durante a Revolução Francesa, como “os que não eram nem a favor nem contra a Revolução”.
E reaparecem de novo na Rússia de 1860, dando origem ao posterior manancial de páginas fabulosas, como certas que encontramos n'O Homem Revoltado, de Albert Camus. “Niilismo” foi um termo, aliás, forjado por Turgueniev, na sua obra Pais e Filhos, na qual foca a revolta desta jovem subcultura, nos tempos do Czar Alexandre II, contra os bonacheirões e hipócritas pseudo-romantismo e pseudo-idealismo da sua sociedade e da elite da mesma. Chegou a confundir-se este movimento com o que esteve na origem do assassinato do Czar e, por isso, a polícia debelou-o, mas os seus actores eram muito mais pacíficos do que era propalado. Foi também então que o niilismo estabeleceu estreitos liames com a anarquia, tanto que Kropotkin chega a descrevê-lo com acuidade.
Já na Alemanha de 1799, Jacobi, numa missiva a Fichte, (des)considerava o idealismo como um “niilismo” (Sic), relativamente ao qual intercederam Schlegel e Hegel, servindo-se do termo. Enfim, deu-se toda esta sucessão, para chegarmos ao momento em que o nada se (re)formula com um alcance conceptual inaudito – a Nietzsche e a essas páginas pósteras d'A Vontade de Poder. Páginas nas quais, a bem dizer, o pensamento parece não encontrar mais limites e onde se vai muito longe a “verter o nada no vazio”.
Ora, o tema do niilismo, em Nietzsche, tem o seu próprio atavismo. As origens, encontramo-las certamente na sofística de Górgias (que Sócrates e Platão desvalorizaram e combateram, tanto quanto Nietzsche desvalorizou e combateu Sócrates e Platão). E, se Kremer-Marietti atribui a Nietzsche um retorical turn em filosofia (que seria, então antes, um [re]turn), já Foucault lhe atribuía a paternidade de um linguistic turn – o qual operou a primeira intrusão metodológica nietzschiana neste ensaio, o abrirmo-lo com um primeiro capítulo dedicado ao Signo: porque, como indicava o Solitário de Engadine, “A filosofia nasce da filologia” –.
Nota-se uma peculiar tendência, no talento retórico dos sofistas e nas suas palavras (pagas a peso de ouro) – as quais manifestavam essa prontidão em ser simultaneamente advogadas de defesa e promotoras públicas da mesma causa, em afirmá-la com a mesma convicção com que a destruíam – em ter por horizonte um – dir-se-ia... neutral ou absorvente? fundo-Nada. E, por isso mesmo, um certo antipositivismo tácito. É subentendida a especulação: a qual decerto não se coaduna com as orientações de Husserl; – ou mesmo o extrapolar – a evitar, de acordo com os escrúpulos neo-positivistas de um Wittgenstein.
Para voltarmos a outros ancestrais de outros dos aspectos do tema do niilismo em Nietzsche. Desta vez, é com Lutero que deparamos. Foi de maneira a subverter o ideário neo-platónico agostiniano, o qual ideologicamente alimentava a Cúria Romana, e também – deve dizer-se – a responder no tempo devido a Erasmo de Roterdão, que Lutero publicou De Servo Arbitrio (1525). Se bem que, trezentos e tal anos depois, para Schopenhauer, a relação com o divino fosse abissalmente distinta da do reformista protestante, a orientação do servo-arbítrio manteve-se e chegou até... Nietzsche. O servo-arbítro teve, então, origem na Reforma, como resposta ao católico livre-arbítrio. E que denota este último postulado existencial, o do livre-arbítrio, o da famigerada “liberdade”, senão uma particular tendência para responsabilizar (os homens) – no fundo, uma moral de carrascos? Nietzsche, no seu Humano, Demasiado Humano, entendia subverter as bases do direito e da jurisprudência, dissolvendo até ao nada as premissas da sua imanente “responsabilidade”. É então que surge a maior incompatibilidade com os iniciais desígnios fenomenológicos. Se bem que – diga-se – Husserl abrigue essa contradição em si próprio; – já que, se não nos admiramos com o facto de se ter convertido ao cristianismo, estranhamos sim que se tenha convertido, não ao catolicismo, mas à... igreja luterana!
Surte, pois, evidente a ordem silogística: livre-arbítrio / liberdade / consciência / responsabilidade. Consciência que, para Husserl, é “consciência de”, “intenção dirigida para o objecto”, assimilando o conceito original de Brentano intencionalidade da consciência. O empirismo fenomenológico oporá, à pesquisa “genética” das relações causais, a descrição dos fenómenos psíquicos. “Psicologia descritiva da experiência interna”, eis como Husserl resumirá as suas intenções. Não seria propriamente o empirismo implícito a incompatibilizar-se com o método de Nietzsche, parentes próximos que são – o mais tenaz empirismo e o mais agudo ateísmo –; seria sim a... consciência!
Pois não foi chamada a consciência à sua modéstia – de um modo, diríamos... irremediável – através do Martelo desse nítrico – diríamos melhor, nitroglicirínico – perspectivista prussiano? Na realidade, já em Menschliches, Allzumenschliches ele explorara por meio de um perspectoscópio versátil, dissolver o eu no nada, e com ele (o eu, o ego, o sujeito), concomitantemente o livre-arbítrio, a responsabilidade, a justiça, não sem – claro está – fazer o mesmo relativamente à fatídica... consciência! Mas será em Also Sprach Zarathustra que denunciará as tendências da Metafísica entronizada, com origens em Platão, e manifestando um ditatorial mantenimento por esse “platonismo para a plebe” milenar, em que o cristianismo consistiu, bem como no cogito cartesiano, em separar a alma do corpo, – “Eu sou corpo e alma', assim fala a criança” –. “Alma como bem pequena parte do corpo” e o Sí-Próprio por detrás do eu, a (com)preender o eu...
Com o Sí-Próprio, Zaratustra anunciava assim a posterior eclosão do conceito inconsciente irracional, já na Psicanálise freudiana do Novecentos, o qual era comparado a um imenso e imerso iceberg, com o subsequente e respectivo, minúsculo e (ir)risoriamente superficial cume... da consciência (Bewusstsein)!
Quanto ao próprio existencialismo, ele não fez, em diversos casos, mais do que dissentir, pelas respectivas heterodoxias, do seu tronco fenomenológico: Heidegger abdicará sempre do conceito “consciência” nas suas análises; e, por seu turno, Sartre separa-la-á do Ser, pela fissura do... nada.
Na verdade, que resta da consciência? Não será ela iminentemente mutável e volúvel, termodinâmica e caprichosa – devido às influências do subconsciente –, conforme todo o nosso ritmo circadiano, até que “perdemos os sentidos”, entrando no sono, no sonho – no domínio do... subconsciente? Não será resumidamente, em termos práticos, uma espécie de “voz dos outros em nós” – a que, afinal, nem sequer devíamos dar muitos ouvidos, prestar muita atenção – “meter a mão na consciência”, moral do ressentiment...?
Ora, voltando a Der Wille Zur Macht, foi nesse profícuo acervo de anotações que Nietzsche melhor desferiu os golpes que vieram, então, a posteriori a perturbar as essenciais questões metodológicas dos existencialistas (inspirados, por sua vez, na fenomenologia). Eram aí literalmente dessubstancializados, em letras lapidares e indeléveis, conceitos como “ser”, “eu”, “sujeito”, “consciência”, “objecto”, “coisa”, “facto”, “conhecimento”, “causalidade”, “fenómeno”...
Que restará, então, da... fenomenologia? Fenomenologia do nada? Ou nada de... fenomenologia?!
Estas conclusões poderiam parecer, talvez, um tanto decepcionantes, senão mesmo desesperadas. Mas não abre Nietzsche a sua (póstuma) obra, dizendo: ”Esta fórmula (A Vontade de Poder) exprime uma reacção, que é o meu princípio e a minha missão; é um movimento que, não sei quando, abolirá o niilismo absoluto, ainda que pressuponha, logicamente e psicologicamente, que não pode advir senão depois dele e dele”? Abolir o niilismo absoluto... esperava o sagaz visionário! Havia, portanto, não só a pars destruens, mas também a visada pars construens, nesta Transmutação de Todos os Valores. Era necessário, por isso, primeiro destruir, para em seguida... construir!
Na verdade, na polissemia, já recenseada, de “niilismo”, “negação” e “nada” são duas acepções que se confundem como irmãs gémeas. Por isso, o filósofo fazia o seu próprio elogio, afirmando-se, em Ecce Homo (essa autobiografia noológica), como “o primeiro niilista da Europa” (niilismo activo) – enquanto insultava de “niilistas” (como se os reduzisse ao nível de boçais asnos), a grande parte dos homens do seu tempo – e mesmo grande parte dos homens até ao seu tempo – (niilismo reactivo). É então que ressurge, decerto, o tema do “humano, demasiado humano”. Da mediocridade inerte que segue sempre na mesma direcção. Da lei do menor esforço. Do nada como repouso sabbatiano. Ou do nada como antinatura e pálida apatia...


O Zero Como Percepto ou Como Afecto


Chegámos, para terminar, à vez da arte. Somos, por isso, antes de mais, compelidos a form(ul)ar uma teoria da aesthesis (o zero como [per]c[ept(o)]), a partir de um perspectoscópio que é já um caleidoscópio (o zero como [a]f[ect(o)]). Estética e caleidologia resumem uma certa sab(edoria) e um certo sab(or), os quais, se derivam da mesma raiz etimológica, aqui mais uma vez se fundem (o filósofo como metalúrgico), de maneira a dar vazão a uma primacial preocupação fenomenológica: a orientação para o concreto e para o vivido.
Voltemos a recensear os sentidos. Primeiro, entendemos focar a visão e começamos pois pelo... desenho. O desenho parece ser a forma acabada da maior simplicidade e economia no que se refere à expressão plástica – tanto que se precisa com as palavras expressão gráfica –: basta um objecto longilíneo que risque, a grafite ou a tinta, e uma folha de papel branca (ou até colorida – enfim, pode empreender-se o negativo e riscar-se com giz, branco ou até colorido, numa lousa negra).
Ora, não haverá no desenho uma lógica binária similar à lógica bivalente? Não tanto quanto à axiológica ética de “verdadeiro”/”falso”, mas quanto a uma amoral energética de cargas “positiva” e “negativa”? Não haverá, na relação risco/linha/traço com “o fundo”, uma lógica idêntica? E, já agora, não se manifestará ela na relação figura(s)/fundo? Ou, então, enfim, na relação claro/escuro, na relação branco/preto, extensivas às demais artes apolíneas? Na sua relação de existência/não-existência? Na sua relação de presença/ausência?
Kitagawa Utamaru ou Aubrey Beardsley – dois dos nomes mais determinantes em fortes contrastes, no desenho –. Na banda-desenhada, seguiram-nos Hugo Pratt e Guido Crepax – tanto os primeiros, como os últimos, apetrechados, não já de aparos, mas de... pincéis –. As manchas negras delimitadas nos alvos territórios. Páginas de desenhos de... negros rotundos e... brancos imaculados!
Nem pode deixar de referir-se aparte – a título de curiosidade, mas a propósito – que houvera já, na banda-desenhada, um tentame de fenomenologia do tema “zero” (ou do tema “niilismo”) com o Beetle Bailey, de Mort Walkerchamado na Europa Recruta Zero – o qual tinha por lema “não deixe para amanhã o que pode fazer depois de amanhã”.
Para voltarmos ao preto e ao branco. Afinal, de que falamos? Certamente, de luz ou de pigmento. Pois, então, temos como alternativas duas teorias da cor – cada qual com os seus territórios e respectivas prósperas produções – a difraccionante espectroscópica de Newton (o branco como soma de todas as cores, o preto como a ausência das cores) e a matéria fusível de Goethe (o branco como a ausência das cores, o preto como a soma de todas as cores).
Particularizando algumas ilustres excepções, entre as quais certamente Rembrandt van Rijn e Georges La Tour – os quais trabalharam obstinadamente sobre o negro, dispondo a(s) sua(s) meia(s)-luze(s), tibiamente candentes, a iluminarem a imensa escuridão –, a história da pintura tem demonstrado a preval(ec)ência da teoria do reverenciado poeta alemão.
Ora, atingindo imediatamente um dos exemplos mais célebres, não é ainda, com o seu Quadrado Negro Sobre Fundo Branco, que Kazimir Malevich poderá reclamar “o zero” ou “o nada” pictórico. Essa obra remete ainda para um positivismo do “um” e até para um novo monismo. É, na verdade, mais com o(s) seu(s) Branco(s) Sobre Branco(s) – onde, no entanto, há ainda uma ténue distinção dos brancos: o(s) do(s) quadrado(s) obliquo(s) e o(s) do(s) fundo(s) – em que se pode afirmar como arauto de uma concepção visual mais próxima do nirvana búdico ou do satori-zen japonês, influências determinantes na progressão actual do Ocidente. E que dizer dos absolutos monocromáticos, incluídos os famigerados azuis kleinianos? Parece, todavia, que mantêm uma certa positividade da cor.
Restar-nos-iam, assim, os absolutos monocromáticos – mas na condição de que fossem aplats plenamente brancos ou aplats plenamente pretoso zero valeria para qualquer dos casos –. Sobrariam as texturas, as rugosidades e as irregularidades matéricas, das telas, e dos óleos ou dos acrílicos, para estabelecer a definitiva desterritorialização do percepto-afecto e sua respectiva reterritorialização sensorial e emocional.
É quando os extremos se tocam. Ou mesmo se... igualam. O Zero e o Infinito: feliz título literário de Arthur Koestler – cuja tradução para o português e para o francês também não foi à letra, sendo o original Darkness at Noon –, pois essa conjugação, quase fotoveloz, de dois fenómenos tão antitéticos, quase que, por si só, os... funde! Tal é igualar branco absoluto a preto absoluto.
Não nos podíamos esquecer da incontornável atitude – que alguns chamaram desdenhosamente “fabricação do prestígio” – de um Marcel Duchamp, decerto na vanguarda das interpretações da (re)valorizada obra do egoísta – Pai da Anarquia – Max Stirner. N'O Único e a sua Propriedade (1845), deste último autor, tinham-se verberado vários golpes nas principais reificações-alienações humanas: como Deus, o Estado, a Razão, o Progresso, a Humanidade, e por aí adiante. Stirner tinha acabado no seu livro a dizer que tinha reposto (a causa do EU) a sua “causa no nada”. Duchamp vai, a partir daí, elaborar uma atitude e uma postura que se podem definir como uma espécie de “despersonalização do autor”, a qual se afirma num nada de autoria, manifesto nos (re)criados ready-mades. Acrescentamos, aliás, que já o dadaísmo procurara, através dos seus não-princípios e das suas collages absurdas, um zero de sentido.
Na literatura e na aposta metalinguagem semiológico-crítica barthesiana, José Augusto Seabra, num ensaio sobre o autor de Mitologias, diz-nos: “A sua reflexão orienta-se, entretanto, de preferência, para a análise das escritas romanescas, em que detecta, a partir da 'escrita artesanal' de Flaubert, que 'constitui definitivamente a literatura em objecto', um processo de 'solidificação progressiva da escrita', que culminaria na 'escrita branca' (de um Camus, de um Blanchot, de um Cayrol), designada por Barthes – à imagem e semelhança do conceito linguístico de 'termo zero' – como o 'grau zero da escrita'. Tratar-se-ia de uma escrita 'inocente', puramente 'indicativa' e 'amodal', que não seria mais do que 'a maneira de existir de um silêncio'. Por ela o escritor deixaria, tendencial e finalmente, de estar ao serviço de qualquer ideologia triunfante”.
Identicamente, na literatura, poderíamos invocar The Invisible Man, de Herbert George Wells, de 1897, dado que aí se dá a tentativa primeira de encarnar uma corporeidade-sem-orgãos, uma encarnação compósita e maciça do... nada. Porém, podíamos ser ainda mais precisos, dado que Wells, por sua vez, deve ter-se baseado, na concepção da sua história, no célebre mito do… Anel de Giges?
Para falar do teatro, referimos ainda o entusiasmo de Barthes, como defensor de Brecht em França, sendo que – de acordo com o método – a suspensão performativa dos actores no veicular de influentes ou convincentes, e possíveis, morais, revelando-se, no final, numa neutralidade amoral – esse movimento se aproxima bastante de um conceito-zero dramatúrgico, ou mesmo – no caso de Brecht – trágico.
No cinema ressalta, desde já, outra curiosidade: na verdade, houve mesmo um actor californiano (de certa nomeada) chamado Zero Mostel. Mas pensamos que é em Naked, de Mike Leigh, que um noema do nihilism na cinematografia é perfeitamente logrado. Fellini Otto e Mezzo, por seu lado, trata da branca de Guido Snaporax em relação ao seu estro criativo, e é nesse registo que se desenvolve: no esboço, nas veleidades, nos pruridos. Temos também, por exemplo, L'Anné Dernière à Marienbad, de Resnais/Robbe Grillet, cuja estratificada e múltipla pletora de sinais se alisa numa superfície significante... branca. E, por fim, – o fim – com Idi i Smotri, de Elem Klimov, focando os efeitos deletérios da guerra nuclear. Ora, partia-se, logo desde a base do tronco dicotómico Lumière / Méliès – desse diâmetro, tendo por extremos o 0 e o 1 lógicos, numa relação de pólos-cargas mimetismo/descrição/realismo e marca/ficção/ilusão/trucagem –, prosseguindo-se nessa via pelo neo-realismo de um Rossellini, de um de Sica, dos primeiros Viscontis – neo-realismo no qual Bazin achava “nada de enredo, nada de actores – portanto: nada de… cinema!” –, com a disparidade do outro pólo antípoda nos von Sternbergs, nos Fellinis e nos recentes Lynchs. Próximos do neo-realismo e desse zero de transformação, encontraríamos os documentarismos de um Flaherty, de um Grierson ou de um Joris Ivens.
No que concerne à música – mais uma (final) curiosidade: os temas "Zero", das bandas rock contemporâneas Smashing PumpkinsYeah Yeah Yeahs –. Por outro lado, desde os Ramones, passando pelos Sex Pistols, até aos Sonic Youth na viva vanguarda, o Punk sempre manteve em si o élan original dos niilistas russos: o de uma certa e genuína sinceridade. E, se na pintura parecia que articulávamos os bin(ómios)(ários) claro/escuro, branco/preto, já na música, esses parecem ser os do silêncio/nota, silêncio/som, silêncio/ruído, silêncio/retroescavadora ensurdecedora que faz vibrar as paredes, os soalhos e os tectos, silêncio/O Grito, de Jerzy Skolimovski – o qual, pela sua audição, mata à... distância (de tais gritos e de tais tessituras, nem Meredith Monk, nem Diamanda Galas, por vezes, se afastam muito). Quanto ao silêncio, há o famoso exemplo de John Cage, com os seus 4'33'' of Silence. É um exemplo um pouco à guiza de Duchamp – trata-se de uma espécie de ready-made. Mas resume em súmula os intentos da música atonal que vinha desde Schönberg – nada... de melodia –.
Terminamos, assim, com a arquitectura. Para falarmos primeiramente de um dos seus elementos – o vidro – que estabelece a imediata diafania ou a diaphainomenia, contanto que, quando não reflecte e está limpo, é… transparente. Ora, na realidade, igualmente a arquitectura opera com dicotomias binárias basilares, nas quais zero e um valem também como extremos. Isto é, na composição das fachadas – cheios/vazios – e na edificação – invólucro mural/espaço delimitado, volumes/vãos –. Ou, então, quando esta se debruça sobre o grau-zero do processo-projecto – “o terreno” ainda descampado, ainda por edificar; ou “o contexto” a ser transformado, alterado –, e lança mão dos seus desígnios morfológico-funcionais, resultando daí duas tendências que têm vindo a revelar-se antinómicas: a da racionalista Escola do Porto, com atenção ao genius loci e ao Vernáculo; e, por fim, a atitude de Rem Koolhaas, com o seu já proverbial “fuck the context!”.



Porto, 19.10.2010, Jorge Taxa

Seguidores