domingo, 30 de janeiro de 2011

Lílite e o seu Destino

1º Acto

PERSONAGENS:
O utente anterior, na fila de espera, a Renata e a Lílite –
Renata, uma amiga da Lílite –
Lílite –
Um funcionário do Guichet –
Dr. Otto Rank –
Drª. Melanie Klein, a Directora do Serviço –
Dr. Sigmund, o chamado Dr. EstranhoAmor –

CENÁRIO:
um átrio com um pórtico encimado por um dístico – "Serviço de Psiquiatria Imaginarium". Numa das alas, um guichet. Na outra ala do átrio, desemboca um corredor lateralizado por três salas exíguas, com três cadeiras cada que definem respectivamente a extensão da base (de cada uma das salas).

(No átrio estão pessoas na fila de espera. No segundo lugar, estão duas amigas. Após o utente anterior ter sido atendido, recebido um recibo e uma receita, e tendo ido embora, é a vez delas)

Uma delas – Olá, bom dia. Se faz favor, diz-me se aqui é o Serviço de Psiquiatria Imaginarium?
O Funcionário do Guichet – É sim.
A mesma delas – Podia, então, dizer-me se a utente Lílite tem agora consulta?
O Funcionário do Guichet – Deixe-me ver aqui... (procura no computador) Ahh... Pois. Tem sim, tem agora às dez horas.
A mesma delas – Obrigada. (fala para a amiga) Estás a ver, Lílite. Tens consulta agora, às dez. Vamos apanhar um pouco de ar fresco lá fora. Guiamo-nos pelo relógio.

(As duas amigas saem para o exterior do átrio, enquanto outras pessoas – figurantes – estão sentadas nas cadeiras da sala de espera do átrio. Dois doutores – a Drª Melanie Klein e o Dr. Sigmund – vêm, do exterior do Serviço, de encontro a outro – o Dr. Otto Rank, que tinha estado sempre no átrio a ler uma revista. Os três doutores cumprimentam-se)

Drª. Melanie Klein – Olá, bom dia, Dr. Otto. Vamos reunir nesta sala.

(Entram para uma sala do corredor lateral, dentro da qual se encolhem, sentados, a formarem com os cotovelos um paralelepípedo ortogonal – a caixa)

Drª. Melanie Klein – Então, como vai isso, Dr. Otto Rank?
Dr. Otto Rank – Olá, bom dia, Dr.ª Melanie Klein. Tudo bom, obrigado.
Drª. Melanie Klein – Hoje, apresento-lhe um doutoríssimo chamado Dr. Sigmund, o Dr. EstranhoAmor.

(Otto e Sigmund cumprimentam-se quase em uníssono) – Olá, bom dia.

Drª. Melanie Klein – Dr. Otto, tem agora alguma consulta com pacientes?
Dr. Otto Rank – Tenho. Por sinal, chama-se Lílite…
Drª. Melanie Klein – Óptimo! Então, o Dr. Sigmund, o chamado Dr. EstranhoAmor, vai guiá-lo na sua consulta. Ele poderá exemplificar algumas das suas teorias muito avançadas. Bom dia, Dr. Otto e Dr. Sigmund. Bom trabalho aos dois.
Dr. Otto Rank e Dr. Sigmund (ao mesmo tempo) – Bom dia, Drª. Melanie.

(Despedem-se, a Drª. Melanie Klein do Dr. Otto Rank e do Dr. Sigmund, e saem da sala apertada)

Dr. Otto Rank – Venha, Dr. Sigmund. Vai acompanhar-me na consulta da Lílite.
Dr. Sigmund – Muito bem.

(Entram para uma das salas, muito apertados, e sentando-se, encolhem-se com os cotovelos na ortogonal)

Dr. Otto Rank – Faça o favor de entrar, paciente Lílite.

(Entra Lílite para a sala, onde se encolhe)

Lílite – Olá. bom dia!... Ui! Aqui está tão apertadinho… Que espaço mais pequeno!
Dr. Otto Rank – Bom dia, Lílite. Se calhar, tem razão...
Dr. Sigmund – Deixe-me prosseguir, Dr. Otto. Ouça, Lílite, por acaso você queria a consulta num estádio?
Dr. Otto Rank – Até podia ser. Podia ser uma terapêutica peripatética… O Dr. Sigmund sabe – aquela actividade do Aristóteles e dos discípulos do Liceu em que o ensino se fazia caminhando ao ar livre... Terapêutica peripatética: que acha?
Dr. Sigmund – Peri… Peri… Eu acho é que o meu caro Dr. está é a precisar da Ris… da Ris... Peri… Dona. Mas diga-me lá, Lílite, o que é que a traz por cá? Conte-nos algo…
Lílite – Às vezes, ando com saudades da era hippie
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto: hippie – já está visivelmente a falar do “pipi”. A sexualidade latente…
Dr. Otto Rank – Ela só estava a dizer que gosta dos hippies…
Dr. Sigmund – Mas diga-me mais, Lílite. O que é que faria nessas festas dos hippies?
Lílite – Oh! Sei lá, dançava, divertia-me com os meus amigos: com o José, com a Marília, com o Alberto, com a Renata…
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto: “Renata”. O que é que tira daí? Renata? Renascida! Num instante, passou da sexualidade para o nascimento…
Dr. Otto Rank – Mas ela só estava a dizer que tem uma amiga chamada Renata…
Dr. Sigmund – Prossigamos. O que é que sente, Lílite, ultimamente?
Lílite – Oh! Sei lá, sinto uma grande dose de desejo.
Dr. Sigmund – Mas sente falta de quê?
Lílite – Eu? Não sinto falta de nada. Sinto só muito desejo.
Dr. Sigmund – Mas sente falta de quê, propriamente?
Lílite – Não sinto falta de nada, já lhe disse. Sinto… desejo!
Dr. Sigmund – Mas sente falta de quê?!
Lílite – Nada a menos! Desejo a mais! Estou até muito bem saciada: comi há um bocado uns espinafres como o Poppey...
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto. Poppey é a figura paterna, os espinafres representam a mãe e, a carência que ela sente, remete para si própria…
Dr. Otto Rank – Mas ela só disse Poppey como há muitas outras coisas no mundo…
Dr. Sigmund – Já estou a ver que lhe fazia falta uma boa dose de Ziprexa, Dr. Otto. Prossigamos. Lílite, conte-me os seus últimos sonhos.
Lílite – Sonhei há poucos dias com uns lobos…
Dr. Sigmund – Está a ver, Dr. Otto: o lobo – uma figura propriamente de Elektra, "O Capuchinho Vermelho"…
Dr. Otto Rank – Mas ela não disse um só, mas vários lobos!…
Dr. Sigmund – Já vi que, ao Dr. Otto, lhe faz falta o Seroquel...
Dr. Otto Rank – Dr. Sigmund, pois, em si, acho que há uma descompensação de Haldol!

(Os dois começam a esgrimir guarda-chuvas que tiram dum bengaleiro adstrito e matam-se um ao outro. Lílite acaba por sair do minúsculo consultório, suspirando, incompreendida. No caminho de saída encontra a amiga)

Renata – Então, Lílite. Correu bem, a consulta?
Lílite – Engraçada, Renata. Lembras-te das nossas festas hippies?
Renata – Claro que me lembro. Woodstock! Bob Dylan! Joan Baez! Jimmy Hendrix! Janis Joplin! Led Zeppelin! Crosby, Stills, Nash & Young! Jefferson Airplane! Donovan! Olha, que tal à tarde vermos mais daqueles desenhos animados do Poppey que tenho gravados em minha casa? Podemos alterná-los com leituras de Kafka, agora que te dás ao vegetarianismo.
Lílite – E que é que isso tem a ver com o meu pai? Ou com a minha mãe? Ou até... comigo? Não achas que o vegetarianismo já existia antes de mim?
Renata – Claro que acho! Mas não estou a ver o porquê de estares a falar nos teus pais. Que é que se passa?
Lílite – Nada, nada... Vamos lá?
Renata – Vamos!

(Saem de cena)

Fim do 1º Acto

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