quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Natal-Imago


2º Acto


Personagens:
Dr. Otto Rank –
Dr. Sigmund / John Ballantyne –
Drª Melanie Klein –
Gomes Leal –
John Nash –
Um Terapeuta Ocupacional –
Maria –
Uma Vendedora de T-Shirts
Uma Jornalista do Jornal dos Debates –
Salman Rushdie –
Drª.Constance Petersen –
Dr. Alexander Brulov –

1º Cenário da Cena 1 e da Cena 3 até ao final: o mesmo de Lílite e o Seu Destino – o átrio com o pórtico a dizer "Serviço de Psiquiatria Imaginarium", o corredor, as salas – o Serviço.

2º Cenário da Cena 2 (sobreposto ao 1º): um Parque da Cidade, bastante arborizado e com respectivo equipamento. Neste Parque, um Café-esplanada e uma porta a dar ao W.C. (por detrás da qual, se podem ocultar duas pessoas) .

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Cena 1

(estão o Dr. Otto Rank e o Dr. Sigmund, Dr. EstranhoAmor, sentados cada um em sua cadeira, amortecidos, trespassados pelo respectivo guarda-chuva, quando aparece a Drª Melanie Klein)

Drª. Melanie Klein – Vá! Vamos a pôr um pouco de ordem no Serviço! Os meus caros doutores fazem o favor de se levantar? Dr. Sigmund, você vem comigo – talvez lhe manque o pé no pragmatismo, apesar do aparato teórico. Dr. Otto, indiquei-o para uma consulta com um doente novo, agora às onze.

(os dois doutores – Dr. Otto e Dr. Sigmund – estavam já a levantar-se e a recompor-se, recompondo-se um pouco até um ao outro e cumprimentando-se amistosamente. O Dr. Otto dirige-se, então, à Dr. Melanie)

Dr. Otto Rank – Sim, Drª Melanie, essa consulta, agora às onze, em que consultório é? E como se chama o doente novo?
Drª. Melanie Klein – É na sala oito. Quanto ao doente, chama-se Gomes Leal. Mas parece sofrer de uma psicose curiosa, em que diz ter viajado no tempo e diz pertencer há século e meio atrás. Parece ter sido – diz ele – através de um anel...
Dr. Otto Rank – De um anel?
Drª. Melanie Klein – Sim, parece que de um anel mágico. Esteja descansado, é simpático, não tem instintos agressivos. De facto, não possuía consigo qualquer identificação, nem os nossos arquivos informáticos lograram já algum dado identitário dele que fosse.
Dr. Otto Rank – E que idade tem?
Drª. Melanie Klein – Diz ter trinta e cinco. Está no Internamento. Na sala oito, tem os resultados das primeiras análises – pode dar uma vista de olhos antes? Depois, quando chamar, levam-no ao seu consultório, está bem?
Dr. Otto Rank – Muito bem, Drª Melanie. Lá estarei, às onze, no consultório oito.
Drª. Melanie Klein – Avante com a sua sempre dedicada atenção, Dr. Otto, até logo. Venha, Dr. Sigmund. A si, vou aplicar um up date no pós-estruturalismo e na antipsiquiatria.

(saem de cena a Drª. Melanie Klein e o Dr. Sigmund. Fica só o Dr. Otto)

Dr. Otto Rank – Bem, vamos ver no relógio. São onze menos cinco. O melhor é antecipar esta promissora – de tão curiosa – consulta.

(o Dr. Otto entra para a pequena sala oito, onde se instala numa cadeira. Dá uma olhadela às análises de Gomes Leal. Por fim, por meio de um telefone – adereço quase único –, fala)

Dr. Otto Rank – Está? Sim, daqui fala o Dr. Otto. Sim, bom dia. Tragam o doente novo – o Sr. Gomes Leal – para a sala oito... Está, está bem. Até já.

(Pausa. Dez segundos depois, dirigem-se, para a mesma sala, um terapeuta ocupacional acompanhado de Gomes Leal)

Dr. Otto Rank – Olá, bom dia, Sr. Gomes Leal. Está a ver? Já sei o seu nome! Quanto a mim, pode tratar-me por Dr. Otto.
Gomes Leal – Olá, bom dia, Dr. Otto.
Dr. Otto Rank – Então, diga-me lá, Sr. Gomes Leal, o que o traz por cá.
Gomes Leal – Dr. Otto, já me disseram que se me portar bem no Internamento, depois terei alta. Vim voluntariamente – aconselharam-me – pois aqui sinto-me mais protegido. Mas, quando vim numa destas carroças mecânicas a que chamam ambulâncias, vi, por uma das janelas, que o meu colega de viagem... de uma viagem recente... andava por aí totalmente enlouquecido. Foi o choque deste mundo; não aguentou, sabe... Mas esse já não me pode fazer mal nenhum!
Dr. Otto Rank – Quem é que quer fazer-lhe mal? O seu colega da tal viagem no tempo? Enlouquecido? Como se chama ele? Onde está?
Gomes Leal – Dr., sinceramente, não cheguei a saber o nome dele.
Dr. Otto Rank – Bolas! Isto já está a ser um tanto demasiado confuso... De facto, parece haver um problema nos registos, dado que não possuímos nenhuma informação a seu respeito. Como podemos saber que realmente se chama Gomes Leal.
Gomes Leal – António Gomes Leal. Mas o meu companheiro roubou-me a identificação, ele é que a possui. Se bem que, a esta altura, já a deve ter perdido... Da maneira que fugiu, parecia perfeitamente lunático!
Dr. Otto Rank – Bem... Se está assim, irremediável é que venha cá parar – aqui ou a outro qualquer dos nossos serviços na cidade. Mas... Diga-me uma outra coisa. O António sente-se bem? As suas análises parecem-me boas... Diz ter trinta e cinco anos? É, sem dúvida, um jovem!... Mas conte-me, do início, como veio aqui parar. Recue um pouco no tempo. Embora você diga que... viajou no tempo?
Gomes Leal – Eu... O melhor é não dizer muito mais. Já reparei que isso é imprudente. Resta-me a educação, a cortesia...
Dr. Otto Rank – Ah... Está a representar o super-lúcido?
Gomes Leal – Lúcido? Então sugiro-lhe que prove um tanto do que diz ser a minha lucidez. Terei alta, antes de obterem a minha identificação?
Dr. Otto Rank – Acho isso improvável. Temos de saber minimamente quem você é; ou que é – como diz ser – António Gomes Leal, seja. Existem alguns nos nossos registos que estão vivinhos da silva. Mas, se nenhum dos seus dados fisiológicos coincide com os seus, também nenhum deles parece ter feito... viagens no tempo?
Gomes Leal – Foi um engano ter dito isso. Foi verdadeiramente imprudente. Retiro o que disse. Faço a minha palinódia.
Dr. Otto Rank – Mas o António não está a colaborar... A pergunta que faço é: de algum modo, antipatizou comigo e tornou-se esquivo?
Gomes Leal – Nada, nada, Dr. Não é nada de pessoal. O que entendo dizer é: preferia não falar nisso.
Dr. Otto Rank – Preferia? Ah... essa é boa! Desconcerta-me.
Gomes Leal – Tal como me desconcertou a mim. Mas foi por contágio... Foi o meu amigo doente Bartleby – que está no Internamento – que a transmitiu à minha pessoa, esta forma desconcertante de falar... Nele, sabe, tal forma parece ter-se sublimado após longa sedimentação – tornou-se sólida, a sua tristeza, inacessível e inexpugnável. Sabe, não gostaria de estar a trair Bartleby... Mas foi dele ter lido aquelas extraviadas cartas todas na posta-restante. Era como verter o tudo no vazio, num unívoco ralo sem tampa, buraco-negro que suga a luz. No caso dele foi o monstruoso "em vão" do destino; no meu, é a inacreditibilidade da minha história que me faz dizer: preferia não falar nisso.
Dr. Otto Rank – Mas então por que veio para cá voluntariamente? Para, primeiro, contar uma história de viagem no tempo e depois desdizê-la?
Gomes Leal – Pois então, agora que me fala nisso, faço aquilo que consiste num requerimento da minha parte – pode parecer-lhe estranho, um tanto caprichoso, mas depois explico –. O Dr. sabe que, amanhã de manhã, se realiza, para os doentes do Internamento, o passeio semanal ao exterior do Serviço – por sinal, ao Jardim Municipal?
Dr. Otto Rank – Sim...
Gomes Leal – Então, a minha petição pessoal – com a qual, de resto, os restantes doentes do Internamento concordaram – é esta: o passeio pode ter, não o destino prévio do Jardim Municipal, mas um novo destino: o Parque da Cidade?
Dr. Otto Rank – Não vejo que haja problema, nada parece obstar – é só uma volta diferente. De facto, o Serviço apenas procura promover um contacto com o exterior – e, se possível, com a natureza –. Mas porquê esse capricho? O Jardim Municipal não é suficientemente airoso?
Gomes Leal – É... Mas preferia não falar nisso...
Dr. Otto Rank – Já são demasiados "preferia", não?
Gomes Leal – O Dr. mesmo disse-me que não havia problema nenhum... Já agora: só mais um pedido.
Dr. Otto Rank – Mais preferências?
Gomes Leal – Eu gostaria que, hoje à tarde, alguém do Serviço – pode ser enfermeiro ou terapeuta – me levasse ao Serviço de Obstetrícia do Hospital a ver uma paciente. É uma amiga que conheci, desde que estou na cidade. Ela estava grávida e a criança, entretanto, já deve ter nascido. Tenho de vê-los, compreende?
Dr. Otto Rank – Ouça, António. São demasiadas as prendas natalícias que pede. Já, as que dá... nenhuma!
Gomes Leal – Mas não vejo qual o problema. Poderei ser permanentemente acompanhado na minha visita à Obstetrícia – contanto que me deêm à vontade para falar particularmente com a minha amiga –­; e, depois, trazido de volta ao Internamento...
Dr. Otto Rank – (depois de uma pausa) Bom. Vamos fazer uma coisa. De algum modo, de forma a conquistarmos um pouco a sua simpatia, e enquanto não dispusermos dos seus dados biográficos, vamos conceder o beneplácito a estas duas – como diz – petições. Mas não planeia fugir no Parque, não?
Gomes Leal – Se o quisesse, fá-lo-ia à mesma no Jardim Municipal.
Dr. Otto Rank – Então, de maneira a colaborar connosco um pouco que seja, diga-me só: que sentido é que faz meter-se cá voluntariamente e já estar a pensar em ter alta?
Gomes Leal – Só peço um pouco de possível. Ser possível ter alta, para sair quando tiver que ser, mas poder sair. Nada de vitalício me augura algo de bom, não quero ficar aqui para sempre. Não tenho a minha identificação, roubaram-ma. Quanto ao aspecto voluntário do meu internamento, só posso dizer que aqui me sinto mais protegido.
Dr. Otto Rank – Ah... Protegido. Aí é que pode haver problema. Que é que quer dizer com isso?
Gomes Leal – Dr., sinceramente – não queria maçar – mas tenho de lhe dizer novamente: preferia não falar nisso.
Dr. Otto Rank – Bem, António, já vi que, de si, não consigo nada. Vamos ficar, hoje, por aqui. Vou providenciar para que a terapeuta o leve, às três da tarde, à Obstetrícia, a ver a sua amiga... Como é que se chama?
Gomes Leal – Maria.
Dr. Otto Rank – Ah, sim? Muito bem, alertarei também a terapeuta para mudar o destino do passeio de amanhã do Jardim Municipal para o Parque da Cidade. É tudo, por agora, António. Eu próprio irei levá-lo ao Internamento, venha.

(Gomes Leal segue o Dr. Otto numa caminhada que vai por uma porta encimada por um dístico com a palavra "Internamento", por onde eles passam, e que é alguém – duas pessoas vestidas de voluntários do Serviço, uma de cada lado – que a trazem – a estrutura, das ombreiras e da padieira, da porta ambulante. Outrem coloca figurantes-estátuas de cartão que representam os demais doentes. Voltam à boca de cena, já estando, portanto, no Internamento do Serviço. O Dr. Otto Rank sai. Fica António Gomes Leal com os outros doentes-estátuas de cartão. Aparece John Nash)

John Nash – Olá, bom dia. Tu és o novo doente, não és? Então, estás com apetite para o almoço?
Gomes Leal – Olá... Estou, por sinal, com um tremendo apetite, sendo que acho que vou devorar o almoço.
John Nash – Apresento-me: chamo-me John Nash, gosto de matemática e jogos. E tu?
Gomes Leal – Sou o António Gomes Leal e sou escritor. Mas também gosto de matemática... menos um pouco de jogos...
John Nash – Não faz mal: eu também não me dou muito com as letras. Mas temos a matemática em comum!
Gomes Leal – Sim, gosto da matemática. Miloch ensinou-me muita matemática...
John Nash – Miloch?... Quem é esse?
Gomes Leal – Miloch? Oh, um sábio demasiado avançado para a sua época. Foi ele que inventou e concebeu o anel...
John Nash – Anel? Que anel?
Gomes Leal – Olha, John, falemos mais de matemática. Quanto ao resto, preferia não falar...
John Nash – Ah, já estás como o Bartleby?
Gomes Leal – Quer dizer que também conheceste o Bartleby?
John Nash – Antes de ti! Lembra-te que tu é que és o doente novo... Bartleby já teve alta, saiu à meia-hora atrás.
Gomes Leal – Ah, que bom para ele! Estava melhor, quando saiu?
John Nash – Tão inacessível como antes... Mas, no geral, aparentemente melhor, sim. Mas diz-me: conheces a Análise e o Cálculo?
Gomes Leal – Oh! Conheço os Limites que os abarcam e compreendem. Posso abarcar o infinito num ápice, mais precisamente que estas engenhocas a que chamam, hoje em dia, calculadoras.
John Nash – Poderias fazer uma demonstração de tal?
Gomes Leal – Claro! Então, vamos fazer uma magia matemática, um real truque de ilusionista. Pede a quatro espectadores que te forneçam quatro respectivos algarismos – de zero a nove, à escolha – sendo que o último poderá escolher um algarismo superior a zero e inferior a nove, e sendo esta última, uma preferência que facilita.

(John Nash procede em relação aos espectadores em conformidade, questionando ao acaso os algarismos que, por sua vez, fornecem)

Primeiro espectador – (de 0 a 9) a.
Segundo espectador – (de 0 a 9) b.
Terceiro espectador – (de 0 a 9) c.
Quarto espectador – (de 1 a 8) d.

(Gomes Leal faz, de cabeça, a conta abcd – abc)
Gomes Leal – Então, primeiro digo que abc,(d) = abc,ddddd... = abcd – abc / 9
(confirma-se na calculadora do computador retroprojectada)

(Gomes Leal faz, de cabeça, a conta abcd – ab)
Gomes Leal – Em Segundo digo que ab,(cd) = ab,cdcdcdcdc... = abcd – ab / 99
(confirma-se na calculadora do computador retroprojectada)

(John Nash faz, de cabeça, a conta abcd – a)
John Nash – Já aprendi o truque – é que eu também sou matemático. Digo que a,(bcd) = a,bcdbcdbcdbcd... = abcd – a / 999
(confirma-se na calculadora do computador retroprojectada)

Gomes Leal – Perfeito! Aprendeste rápido, John. Olha, já estão a chamar-nos para o almoço.
John Nash – Sim, vamos comer.
Gomes Leal – Vamos!

(John Nash e Gomes Leal saem de cena. Os ponteiros de um relógio que alguém traz à boca de cena rodam até às três. Gomes Leal reaparece onde estão os doentes-estátuas. Fica um bocado à espera, até que vai ter com ele o terapeuta ocupacional)

Terapeuta Ocupacional – Então, estamos prontos?
Gomes Leal – Sim, podemos ir.
Terapeuta Ocupacional – Teve bom almoço?
Gomes Leal – Sim, estava bem condimentado.
Terapeuta Ocupacional – O senhor Gomes Leal o que é que faz na vida?
Gomes Leal – Sou escritor e poeta. Sabe? Como o Holderlin…
Terapeuta Ocupacional – Ah… esse escreve literatura policial?
Gomes Leal – Não. Diria, literatura… celestial.
Terapeuta Ocupacional – O senhor faz-me ter – e, as que tenho, são boas – recordações de um doente que tivemos e que era parecido consigo. Não deve conhecê-lo, foi já há alguns anos. Chamava-se João de Deus... Bons tempos! Vamos, então, meu caro senhor. Siga-me.

(dirigem-se, numa caminhada breve, para a porta – ambulante, que duas pessoas vestidas de voluntários do Serviço levam – da Obstetrícia, por onde passam, voltando à boca de cena. Aqui está Maria sentada numa cadeira, com o bebé ao lado num berço)

Terapeuta Ocupacional – Muito bem, senhor Gomes Leal. Pode visitar agora a senhora Maria. Vou deixá-los à vontade. Venho buscá-lo às quatro e meia. Boa tarde.

(sai de cena)

Gomes Leal – Olá, Maria (cumprimenta-a com dois beijos na face). Então, que tal vai isso?
Maria – Olá, António. Olha, já saí da cama, já me posso sentar. Imagino que queiras ver o bebé...
Gomes Leal – Claro que sim. Deixa ver (olha para dentro do berço)... Hé lá! Parece viçoso! Como se chama?
Maria – Emanuel. Foi o nome que eu e o pai lhe pusémos.
Gomes Leal – Sabes, trouxe-lhe três presentes: um útil, um lúdico e um valioso, para lhe dar as boas-vindas a este mundo: respectivamente, um conjunto de fraldas, um guizo e "A Crítica da Razão Pura"...
Maria – "A Crítica da Razão Pura"? Não será isso um bocado demasiado complicado para a sua idade?
Gomes Leal – Claro! É de um outro Immanuel... É inútil: por isso, valiosa. Não lhe dará, durante bastante tempo, muito apreço. Mas ir-se-á familiarizando com o objecto, sendo que, lá pela adolescência – após uma longa curiosidade de apenas título –, despertará nele o ímpeto de a ler... (canta "Os Pais Natais", do album "Os Amigos de Gaspar", de Sérgio Godinho) Já que é já Natal, se um Pai Natal houver – mais que dois ou três, então, à vez – podemos ser, sei lá, o Pai Natal sempre de alguém: de quem não tem direito ao seu presente, resplandecente...
Maria – (canta) Já que é já Natal, se um Pai Natal houver – mais que dois ou três, então, à vez – podemos ser, sei lá, o Pai Natal sempre de alguém: de quem não tem direito ao seu presente, resplandecente...

(ouvindo-se um fundo musical, cantam todos a letra emitida pelo retroprojector. Assim que acaba, Maria fala)

Maria – Obrigada pelos presentes, António.
Gomes Leal – Não tens de quê. A minha prodigalidade resulta do possível. Há uma que também faz parte das razões da minha urgência em visitar-te – é que queria dizer-te uma coisa...
Maria – Quase não precisavas de me dizê-la, adivinho-a já. Vais voltar, não é?
Gomes Leal – É precisamente porque foste a única pessoa que acreditou, um pouco que fosse, no que eu dizia, que precisava de falar contigo.
Maria – Nunca pus em dúvidas o que me dizias, com tal realismo e verosimilhança me falavas. Por outro lado, embora ainda não tivesse lido A História de Jesus Para as Criancinhas Lerem, já tinha lido A Canalha... Falas com tal rigor, és tão genuíno, tão verídico: tudo coincide e bate certo de tal maneira, que só posso acreditar...
Gomes Leal – A Canalha, publiquei-a em 1873. A História de Jesus Para as Criancinhas Lerem, publiquei-a em 1883... Quero dizer: há três meses, antes de vir parar a 2011... Quero dizer: há cento e vinte e oito anos!
Maria – Já nessa altura eles te perseguiam, como ainda agora te perseguem – desde que o teu companheiro de viagem conseguiu avisá-los já em 2011, há dois meses –: como me disseste há dias.
Gomes Leal – Sabes perfeitamente que organizações secretas como a Opus Dei, a Ordem dos Templários ou a Maçonaria, são centenárias, já existem há muito. Já naquela altura, dispunham de uma rede secreta de correligionários e acólitos que espiavam detalhadamente as actividades de alguns de nós, que desejavam controlar desde mancebos. Era o seu fito: ostracizar, segregar e até mesmo... enlouquecer!... Não matam, não sujam as mãos: são mais finos do que isso. No Islão é diferente; aqui, é assim... Mas não se limitavam a espiar e amiúde a boicotar as actividades – particularmente, de membros do satanismo, como eu, um autêntico Tshandala –. Faziam muito, muito mais...
Maria – Inclusive, perseguirem-te ao ponto de viajarem no tempo contigo!
Gomes Leal – Miloch tinha entre eles os maiores inimigos. Eles, por seu lado, espiavam a sua actividade inventiva até ao pormenor. Sabiam perfeitamente da existência de um anel fabuloso. Só não sabiam para o que servia...
Maria – Como te deste conta do seu cerco, da sua colusão? A partir de que momento?
Gomes Leal – Tu, por acaso, escreves algum diário?
Maria – Desde há três anos que não...
Gomes Leal – Então fazes bem. Os diários que ainda possuires, aconselho-te, por favor: não a deitá-los fora, mas a... queimá-los! E, se voltares a pensar em escrever um diário, não o faças nunca por favor.
Maria – Por que não, António? Que mal tem? Pode ser um bom guia...
Gomes Leal – É verdade que sim, Maria. Mas eles, sobretudo, sabem disso: do enorme valor, conforme à solidez de um longo projecto espiritual, que um diário pode ter para um jovem interessado, que simplesmente quer registar, sedimentando, a experiência vivida da sucessão dos dias, da existência e do real. Até digo que deve haver precisamente... Caça-diários! Em última análise, eles podem ir parar às mãos e aos olhos errados! Nos jogos das cartas, proibido mostrar as nossas mãos! Mas não foi assim que me dei conta deles, quando soube que tinham lido todos os meus diários e disfrutado da intimidade em tal implícita. Nisso reparei quase logo a seguir a ter visto a marca do sapato, a pegada vestigial, no chão molhado da minha solitária casa...
Maria – Molhado?... Estava a chover?
Gomes Leal – Não, era pleno Verão. Mas, eu próprio, tinha inadvertidamente derrubado a vasilha de água que estava em cima da mesa e decidido sair sem limpar ou enxugar o chão convenientemente, deixando que secasse por si com o calor que entrava pela janela aberta. Quando voltei reparei em estranhas pegadas de água – da sola de um sapato que evidentemente não era o meu... E, em cima da mesa, estavam os diários... Percebi tudo num ápice... Foi depois que começaram a acontecer coisas estranhas...
Maria – Tinhas toda a má-sorte por tua conta! Tudo te corria mal...
Gomes Leal – Sobretudo, do que tenho a maior desconfiança é desse tipo específico, concreto e secreto de seitas e clubes. Seitas como aquela que há agora da Igreja do Reino Universal, sabes... São propícias a todas as espécies de colusões, de coalizões em prejuízo de terceiros: de eventuais imoralistas cuja influência, se fosse próspera, poderia tornar-se perniciosa e perigosa ao mantenimento de certas instituições estatuídas, ao mantenimento de certos poderes. Há que cortar o mal pela raíz...
Maria – Eles andam aí... Os Torquemadas... Boicotes, não é só a Cuba...
Gomes Leal – Sim, engraçada, Maria. E do que também suspeito é que, os que me perseguem em 2011 – descendentes dos seus ancestrais que me perseguiam em 1883 –, estejam à minha espera, quando sair daqui daqui. Eles esperam que demore, mas não demorará muito mais... Isto é – e era isto que anseava por dizer-te –: amanhã mesmo voltarei para 1883!
Maria – Sabia que um dia irias voltar. Mas... Não disseste que aqui, no Hospital, no Serviço de Psiquiatria, te sentias mais protegido?
Gomes Leal – Enfim, um estabelecimento prisional seria eficaz, mas não o mais indicado. Agora, que escrevo os diários na minha própria cabeça, têm só uma noção vaga e distante dos meus movimentos. Eles julgam que devo ter enlouquecido e que, em último caso, estou neutralizado. Pelo meu lado dei-me conta de como os tempos que correm ainda jogam pelo meu lado, posto que fazem a sua ainda substancial fragilidade contemporânea... Antes julgava que espiavam tudo, até a minha nudez. Agora, não. Agora, sinto-me a falar aqui contigo a sós – assim, em voz baixa – de um modo que ninguém nos ouve...

(pausa)

Maria – Mal seria. Senão, pensava que não devias abandonar o Serviço... Amanhã? Amanhã, voltas para 1883? Tens contigo o anel? O anel onde está?
Gomes Leal – O anel está escondido no Parque da Cidade e amanhã vou lá, por meio de um passeio do Serviço com os doentes. Escondi-o lá, numa vez que por lá passei – enterrando-o na terra, debaixo de um arbusto que assinala o sítio – por ser demasiado precioso para o possuir. Achei que eles podiam querer roubar-mo, assim como o seu sequaz de há centro e vinte e oito anos: o tal, o que me desapossessou da minha identificação, sob ameaça de arma, depois que viajámos e que nos encontrámos os dois em 2011...
Maria – Que é feito dele? Como é que, afinal, logrou ele viajar no tempo contigo?
Gomes Leal – De um certo modo, não foi tão infortunada a sua vinda: foi para meu bem, numa excepção única à regra. Quando eu digitei, no anel inventado por Miloch – ele chamava-lhe o seu verdadeiro Anel de Giges – pois, de facto, o anel também permitia invisibilidade –... Quando teclei nos quatro dígitos do anel – tal era o seu alcance temporal –, a data para que queria viajar, no tempo, não reparei que o crono-tele-transporte não era automático. Decidi, então, em pleno ar livre, atravessar uma estrada. O teletransporte da matéria demorava a fazer-se e a invisibilidade a realizar-se. Foi assim que, não vendo eu uma carruagem que vinha mesmo na minha direcção, viu-a o espião do dia – que vinha mesmo atrás de mim e o qual estava perplexo a assistir à minha desintegração – e tentou impedir que a carruagem me abalroasse... Foi assim que, quando me pôs a mão no ombro para me empurrar para o lado, também ele... viajou no tempo comigo!
Maria – Fantástico! Mas por que quis ele a tua identificação, assim que vieram parar a 2011?
Gomes Leal – Suponho que, assustado como ficou – assim que olhou à sua volta e que percebeu que, este, não era o Velho Mundo, – que percebeu o que lhe tinha acontecido e, ante a hostilidade e crueldade – para ele, anacrónica, anticrónica – deste Admirável Mundo Novo... E, aliado ao facto de possivelmente e casualmente não possuir nenhuma identificação própria... E, por fim e sobretudo, porque – como te tinha dito nas nossas conversas – este espião e sequaz da organização secreta era tremendamente parecido comigo – como um irmão gémeo, como um verdadeiro sósia! Pude reparar ainda no seu semblante e até na sua própria compleição: parecido comigo! O que não é por acaso: eles deliberadamente usavam sósias nossos para dissimularem aos nossos vizinhos as suas entradas nas nossas casas solitárias. De chaves e gazuas, dispunham para qualquer fechadura! Tal é o Poder... Mas não lhe deviam faltar razões para que quisesse a minha identificação...
Maria – Bem: hoje, há as escutas, as câmaras, o Big Brother, os hackers... Falta saber uma coisa. Não gostaste de 2011? Preferes 1883?
Gomes Leal – Sabes, Maria, sinto-me um homem ultrapassado pelo bulício dos modernos nevropatas, não me dou com estes tempos. Tenho de voltar, compreendes. Aliás, porque há coisas que tenho que fazer lá. Com a minha nova experiência, a eles, posso enfrentá-los muito melhor.
Maria – Julgo-te mais próximo do satanismo de Baudelaire e Aleister Crowley, do que do ateísmo temperado de Nietzsche: é um aviso. Mas não o tomes a peito, por favor...
Gomes Leal – Não, Maria: de certo modo, já me sinto, eu próprio, mais cristão desde que tudo isto se passou. Daí que possa ser uma tendência do meu futuro... Quero dizer... Do vosso passado!
Maria – E que vai ser feito do teu sósia espião? Como poderá voltar contigo? Vai ficar aqui? No nosso futuro?... Quero dizer: no nosso presente?
Gomes Leal – Sinceramente – agora, que me dizes isso –, gostava de retribuir-lhe o gesto que teve comigo em desviar-me da carruagem – menos, claro está, o de tirar-me os documentos, ameaçando-me –. Mas, pelo que percebi, pela janela da ambulância, quando vinha para cá, vi-o a vaguear, derivando inconsistentemente pela rua, totalmente perturbado, o infeliz. Amanhã, todavia, partirei, com ou sem ele...

(neste momento em que falava, Gomes Leal é interrompido pela irrupção na sala do Terapeuta Ocupacional)

Terapeuta Ocupacional – Então, estamos prontos? Terá sido o bastante, por hoje?
Gomes Leal – Sim, podemos ir. Vou só pedir-lhe que espere um minuto lá fora, de forma a que me despeça... por hoje, claro está! Da dama?
Terapeuta Ocupacional – Está bem, eu esperarei lá fora. Mas é um minuto!

(sai o Terapeuta Ocupacional de cena)

Gomes Leal – Bem, adeus, Maria. Só posso desejar-te felicidades: para ti, para o teu esposo e para o vosso Emanuel.
Maria – Adeus, António. O melhor é não ser uma grande despedida. Que tudo te corra bem nos teus dias do futuro passado!

(abraçam-se e cumprimentam-se. Gomes Leal fica no mesmo sítio, mas a mexer com os pés, como se estivesse a andar para a frente, ficando na boca de cena. O Terapeuta Ocupacional vai para trás a fazer moonwalk até Gomes Leal, aproximando-se até à boca de cena. E, da mesma boca de cena – ao mesmo tempo –, se afasta Maria, deslocando-se para trás – se possível, sentada ainda na cadeira, mas com ela semi-levantada, pegando nela, de modo a facilitar a deslocação. Afasta-se e sai de cena. Ao mesmo tempo, alguém, vestido de voluntário do Serviço, leva o berço para fora de cena. Gomes Leal e o Terapeuta Ocupacional, que estavam – por assim dizer – a caminhar parados, passam a deambular um pouco, até que dois voluntários trazem a estrutura das ombreiras e da padieira da porta encimada pelo dístico "Internamento", pela qual Gomes Leal e o Terapeuta passam e saem de cena. Alguém traz o relógio à boca de cena e gira, por detrás, os seus ponteiros: das quatro e um quarto, dando uma volta completa até às seguintes quatro, indo até às nove da manhã. Ao que após sai de cena, levando o relógio. Por fim, um voluntário volta a trazer ao centro das atenções os figurantes de doentes-estátuas de cartão e fica atrás delas. Gomes Leal aparece um pouco depois e fica à espera. Até que aparece o Terapeuta Ocupacional)

Terapeuta Ocupacional – Olá, bom dia. Espero que tenham tido um bom sono e uns bons sonhos e um bom pequeno-almoço. Vamos ao nosso passeio semanal ao Exterior do Serviço. Por pedido do senhor Gomes Leal, foi transferido para o Parque da Cidade. Então, vamos a isso.

(dois voluntários trazem uma carrinha de cartão, por detrás da qual todos se metem – o Terapeuta, um Segurança, Gomes Leal e os figurantes-estátuas de cartão, manejados por mais dois voluntários, não sem que as suas cabeças deixem de ser vistas pelas janelas da carrinha de cartão. Deambulam todos, por detrás da carrinha de cartão, um pouco em volta da boca de cena. Até que outro voluntário entra em cena, portando uma lápide ambulante a dizer "Parque da cidade". A carrinha de cartão passa a lápide ambulante, pára um pouco depois e todos saem. Vários voluntários entram em cena para transformarem – algo já previamente preparado –, um pouco, o Serviço de Psiquiatria Imaginarium no Parque da Cidade, saindo no fim, de novo, de cena. As pessoas do passeio descomprimem um pouco, enquanto se aproxima uma vendedora ambulante de t-shirts vermelhas todas iguais. Todos se dirigem a ela com o intuito de lhe comprarem uma t-shirt, o que acabam, todos, incluindo Gomes Leal, por fazê-lo: por comprar a t-shirt vermelha e depois vesti-la – isto é: menos o Terapeuta, de bata branca, e o Segurança. Todos ficam vestidos com t-shirts vermelhas iguais)

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Cena 2

Terapeuta Ocupacional – Sugiro agora que demos um passeio pelo parque. Vamos!

(saem de cena todos. Insinua-se, então, em passeio flanante, no palco – em pleno Parque –, um par, que viremos a saber serem Salman Rushdie e uma jornalista do Jornal dos Debates. Um voluntário trás, um pouco atrás deste par, um outro par – desta vez, de estátuas de cartão de guarda-costas com óculos-escuros –, por detrás do qual se coloca e vai portando, lentamente)

Jornalista – Sr. Salman Rushdie: nunca é demais agradecer mais uma vez, da parte do nosso Jornal dos Debates, a entrevista que nos concede, por esta ocasião da sua visita ao nosso país, mais propriamente a este distrito e a este Parque da Cidade. Espero que esteja a ser agradável, o passeio…
Salman Rushdie – Este Parque é deslumbrante. E o dia natalício de sol, aqui, é delicioso! Viu, por acaso, os meus guarda-costas?
Jornalista – Os seus guarda-costas estão um pouco atrás de nós. Não se preocupe: aqui, pode sentir-se protegido. A sua vida nunca mais foi a mesma desde que Ayatolla Khomeini o condenou publicamente à morte com a fatwa, pois não?
Salman Rushdie – Nem podia ser. Tivemos de triplicar cuidados. Com fundamentalismos não se brinca…
Jornalista – Foi esse mesmo fundamentalismo e as perseguições que o Islão fazia, e faz, às religiões hindus e cristã que criticou nos seus Versículos Satânicos?
Salman Rushdie – Eles não podiam aceitar que algo tão divino e intocável como o Corão fosse posto em causa.
Jornalista – Considera que houve uma evolução desde a sua primeira obra “Grimus”, passando por “Filhos da Meia-noite” e “Vergonha”?
Salman Rushdie – Ah… Desculpe-me, menina jornalista. Mas estou a ver ali uma vendedora de t-shirts e acho que me está apetecer ficar-lhe com uma. Gostava de levar uma recordação deste Parque. Aliás, hoje, com este dia natalício de sol e de calor, eis-me vestido com uma camisa quente cinzenta – e agora deu-me o capricho de me vestir de vermelho…
Jornalista – Força nisso!

(a vendedora de t-shirts já tinha reaparecido. Salman Rushdie vai ter com ela e compra-lhe uma t-shirt vermelha. Volta para perto da jornalista)

Salman Rushdie – Podemos voltar à entrevista. Mas sentemo-nos numa das mesas deste Café do Parque: apetece-me descansar um pouco do passeio.
Jornalista – Claro!

(sentam-se os dois numa mesa do Café do Parque)

Salman Rushdie – Sabe, menina: é muito natural que se dê uma evolução na carreira e na qualidade de um escritor, desde que tenha alguma longevidade. Mesmo Rimbaud, se vivesse até aos 50 anos, e se – é preciso acrescentar – escrevesse até lá, creio que aprumaria bastante a sua forma de escrever – e Mozart, a sua de compor.
Jornalista – Mas o seu primeiro romance – ”Grimus” – foi pouco notado. Embora, com “Filhos da Meia-Noite”, fosse catapultado para o sucesso do Booker Prize
Salman Rushdie – Claro, claro... Olhe, só lhe peço que me dê agora a licença de ir ao W.C. do Café, mudar de camisa e vestir esta t-shirt vermelha. Sentir-me-ia um tanto melhor…
Jornalista – Faça o favor, Sr. Rushdie…
Salman Rushdie – Obrigado. Ora, com licença...

(Salman Rushdie entra numa porta que diz W.C. Entretanto, voltam os doentes – todos vestidos com as t-shirts vermelhas – com o Terapeuta e o Segurança. Acercam-se do Café onde está a jornalista na mesa à espera de Salman Rushdie. É então que Gomes Leal – de t-shirt vermelha – também entra no W.C. Finalmente, o terapeuta começa a reunir o pessoal de modo a voltarem para o Serviço de Psiquiatria. Chama por todos e todos entram para detrás da carrinha. O Terapeuta vai contando todos os doentes e dirige-se ao Segurança)

Terapeuta Ocupacional – Sr. Segurança, parece-me faltar um doente...
Segurança – Ah... Já sei! Foi ao W.C. Eu vou buscá-lo.

(O Segurança passa algum tempo à espera na porta do W.C. Até que sai Salman Rushdie já com a t-shirt vermelha vestida. O Segurança indica-lhe para segui-lo. A princípio, Salman Rushdie parece contrariá-lo, mas é assim que o Segurança toma medidas mais enérgicas e o força a meter-se na carrinha. Entretanto, tanto a jornalista como os guarda-costas de Rushdie – com a confusão – não deram por nada disto. Por fim, a carrinha parte e sai do Parque e sai de cena, pois, a lápide que alguém transporta a dizer “Parque da Cidade”, afasta-se. Saem a jornalista e os guarda-costas de cena. Voltam os voluntários a repor um pouco o Serviço de Psiquiatria e saem de cena. A carrinha volta à cena e chega ao Serviço. Saem da carrinha os doentes e Salman Rushdie – com t-shirts vermelhas – mais o Terapeuta e o Segurança. Estes dois últimos saem de cena, ficando só Salman Rushdie, com ar de preocupado, a andar de um lado para o outro, com os outros doentes-estátuas de cartão. Até que aparece o Dr. Sigmund)

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Cena 3

Salman Rushdie – Dr.! Dr.! Pode dar-me uma ajuda aqui. É que eu não sei como cá vim parar. Ainda por cima, não tenho comigo a minha identificação! Ficou no casaco... O casaco, quem o possui, neste momento, é um guarda-costas pessoal... Isto é muito perigoso, pois não sei deles. Dos meus guarda-costas!.... Corro muitos riscos aqui. Estou a ser perseguido pela condenação à morte da fatwa!…
Dr. Sigmund – Esteja descansado, meu caro senhor. Isso é só ilusão sua. A de que está a ser perseguido… A psicose é uma patologia muito recorrente neste Serviço. Mas, com uma boa dose de medicação, tudo se resolve.
Salman Rushdie – Medicação?... Não, isso, por favor, não, Dr.! O Dr. está a falar com Salman Rushdie!...
Dr. Sigmund – É muito natural o doente psicótico recusar-se a tomar os medicamentos. Ora, hoje já dispomos de tratamentos compulsivos. Quanto a salmão, só conheço fumado...
Salman Rushdie – Salman Rushdie... Nunca ouviu falar?
Dr. Sigmund – Mas quem é que pensa que o persegue? O senhor cometeu algum mal?
Salman Rushdie – Foi por apostasia que me condenaram à morte e, agora, me perseguem...
Dr. Sigmund – O senhor tem um sotaque inglês, mas não se diz apostasia: diz-se azia da posta. O senhor comeu "posta à mirandesa" e ficou com azia: não foi?
Salman Rushdie – Não é altura para brincadeiras...
Dr. Sigmund – Mas diga-me uma coisa: o senhor Salmão Rusdi ouve as vozes?
Salman Rushdie – Vozes? As vozes das pessoas? Claro que ouço! Sofro de ptosis nos olhos, sendo, às vezes difícil manter as pálpebras abertas; mas ouço muito bem!
Dr. Sigmund – Então, dê-me só um instante para escrever aqui... (escreve no relatório, soletrando em voz alta) De... lí... rios... au... di... ti... vos... Aluci... nações... perse... cutó... rias...
Salman Rushdie – O Dr. não acredita que tudo isto poderia ser uma terrível coincidência?
Dr. Sigmund – Eu não acredito que haja coincidências. Nada é por acaso... O senhor sabe, os lapsus...
Salman Rushdie – Então o Dr. não acredita nas coincidências, no acaso... Não será isso o indício, que também é um início, de um pensamento psicótico?...
Dr. Sigmund – Alto lá! A autoridade médica aqui sou eu... Vou receitar-lhe – começa com o injectável, lá em cima, no Internamento – para começar, 200 mg do decanoato...

(é nesta altura que a Drª. Melanie Klein irrompe na sala e em cena)

Drª. Melanie Klein – Dr. Sigmund! Dr. Sigmund! Parece que cometemos um engano grave. O Dr. Sigmund está, neste momento, a falar com quem presumo ser – olá, boa tarde – Sir Salman Rushdie?
Salman Rushdie – Olá, muito boa tarde! Na verdade, veio em boa altura!
Drª. Melanie Klein – Telefonaram-nos da Embaixada, como o fizeram para todos os hospitais. E, como viram a nossa carrinha do Serviço no Parque, onde você estava quando desapareceu... Mas não se preocupe mais, Sir Salman Rushdie, esteja descansado. Os seus seguranças já vem a caminho para levá-lo onde bem entender. Está lá fora um Segurança que o vai acompanhar à entrada e esperar lá consigo. As nossas maiores desculpas pelo incómodo: é o que me parece dever dizer...
Salman Rushdie – Ora essa. Já está resolvido o problema, é o que importa. Boa tarde.
Drª. Melanie Klein – Boa tarde, Sir Rushdie.

(Salman Rushdie sai de cena, acompanhado pelo Segurança)

Drª. Melanie Klein – Quanto a si, Dr. Sigmund, sugeria-lhe – de modo a uma melhor integração – que se juntasse a nós, na nossa ceia natalícia entre os psiquiatras do Serviço Imaginarium, a mim, ao Dr. Otto Rank e à nossa colega – teria todo o gosto em apresentá-la a si – a Dr. Constance Petersen...
Dr. Sigmund – Ah... Sim... Pode ser...
Drª. Melanie Klein – Dr. Sigmund... O Dr. sente-se bem?
Dr. Sigmund – Ah... Sim... Não tenho nada, sinto-me muito bem.
Drª. Melanie Klein – É que eu estou a vê-lo assim um bocado pálido... Não estará com excesso de transferência?
Dr. Sigmund – Não, não... Não é nada...
Drª. Melanie Klein – Se você o diz... Mas ainda não lhe dei as maiores novidades!... De facto, já apareceu o verdadeiro António Gomes Leal, o que desapareceu no parque. Telefonaram-nos da Polícia. Este possui a identificação do dito Gomes Leal... E é mesmo parecido com o doente que desapareceu, e que foi visto, ontem, pelo Dr. Otto Rank. A espessa barba cresceu-lhe muito rápido, é estranho. E, de um dia para o outro, perdeu completamente o juizo, está perfeitamente lunático, não articula já raciocínios, dir-se-ia galopante, a demência. Mas, o mais estranho, é que, a identificação que os agentes policiais conseguiram encontrar nele, data de 1880!... Estranho, não acha, Dr. Sigmund?
Dr. Sigmund – Eu... Eu já não percebo nada...
Drª. Melanie Klein – Já vi que, hoje, não está num dos seus dias... Mas, concerteza, vai redimir-se, logo, na ceia natalícia. Passe bem, Dr. Sigmund.
Dr. Sigmund – Boa tarde, Drª. Melanie, até logo.

(a Drª. Melanie Klein sai de cena. O Dr. Sigmund fica um pouco em cena e acaba também por sair. Alguém "voluntário" traz uma mesa, com uma toalha posta e víveres e talheres – entre os quais, garfos – para a boca de cena, e sai. Alguém traz o relógio, cujos ponteiros roda, das seis às dez, e sai. Irrompem em cena os doutores Melanie Klein, Sigmund e Otto Rank)

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Cena 4

Drª. Melanie Klein – Ah!... Óptimo! Estou a ver que temos mesa! Como anfitriã, pergunto-lhe, Dr. Sigmund, que acha desta pantagruelice? Ao dispor da nossa... gulodice?
Dr. Sigmund – Está muito bem. Parabéns!

(sentam-se à mesa e, enquanto se senta, a Drª. Klein fala)

Drª. Melanie Klein – Não é caso para dá-los a mim, mas a Jesus – não me esquecendo de todos os que nasceram a 25 de Dezembro... Mas, veja... A Drª. Constance Petersen está a chegar...

(ao mesmo tempo que diz estas últimas palavras, a Drª. Klein, a Drª Constance Petersen irrompe em cena)

Drª. Constance Petersen – Olá, boa noite a todos. Peço escusa pelo atraso...
Drª. Melanie Klein – Que não foi quase nenhum! Queria apresentar-lhe o Dr. Sigmund, o novo elemento no nosso Serviço...
Drª. Constance Petersen – Olá, boa noite, Dr. Sigmund, como está?
Dr. Sigmund – Muito bem, obrigado. E a Drª.?
Drª. Constance Petersen – Bem, obrigado... Já ouvi falar muito de si. Sou uma sua leitora assídua. Os seus livros parecem-me incontornáveis...
Dr. Sigmund – Obrigado... Eu procurei esforçar-me...
Drª. Melanie Klein – Bem, vamos petiscar!

(enquanto todos petiscam, volta a falar a Drª. Constance Petersen)

Drª. Constance Petersen – Sabem? Hoje, vi um paciente a quem o gato tinha feito, na parte superior do seu antebraço, uma arranhadela com as unhas. Parecia, de tão paralelas e compridas eram as marcas das unhas, mesmo uma pauta musical. Assim...

(a Drª. Constance Petersen, que entretanto tinha pegado num garfo, raspa a toalha com o garfo longilineamente, para dar o exemplo)

Dr. Sigmund – (bruscamente) Deve haver uma reserva de toalhas inesgotável neste Serviço!...

(todos ficam surpreendidos com esta afirmação. Pausa breve)

Drª. Melanie Klein – Dr. Sigmund... O que é que lhe deu?!
Dr. Sigmund – Ah... Não estou a sentir-me muito bem... Desculpem... Não sei o que se passa comigo... Vejam lá que, hoje, por sinal, descobri no meu casaco, uma cigarreira com as iniciais J.B. Não sei como foi parar ao meu casaco...

(é então que, ainda não tinha acabado o Dr. Sigmund de dizer estas palavras, irrompe em cena o Dr. Alexander Brulov)

Dr. Alexander Brulov – ...Mas sei eu! Eu sei o que querem dizer as iniciais J.B...
Drª. Melanie Klein – Dr. Alexander Brulov! Que surpresa! Quem diria que você agora ia aparecer... do nada! E, afinal, o que é que querem dizer essas iniciais?
Dr. Alexander Brulov – Querem dizer John Ballantyne. É essa a verdadeira identidade do suposto Dr. Sigmund, com quem pensam estar a falar.
Dr. Otto Rank – Bem me queria parecer que havia aqui algo de estranho...
Dr. Alexander Brulov – Tudo se explica. Já venho, desde há algum tempo, a seguir os seus passos, caro John Ballantyne. Não se preocupe: o senhor não matou o verdadeiro Dr. Sigmund Freud. Esse está vivo e a sua saúde recomenda-se. Ele e os seus amigos, antes de procederem ao seu escape dos boches nazis e traspassarem a fronteira, propagaram o boato que Freud já tinha sido executado para melhor esconder os seus planos de fuga. E você, meu amigo, quando ouviu esse boato, – admirador autodidacta do pioneiro da Psicanálise – acreditou que tinha sido você próprio a assassinar Freud, em visível descompensação e em delírio histórico-mundial, e veio aqui parar ao Serviço Imaginarium em presumível substituição dele...
John Ballantyne – Eu, Dr.?... Mas porquê? Com que fito?
Dr. Alexander Brulov – Para dissimular um crime que acreditava ter cometido. Mas esteja descansado, amigo: não o cometeu de todo.
Drª. Melanie Klein – No entanto, caro John Ballantine, isso não quer dizer que não esteja a precisar de medicação e de passar uns dias connosco no Internamento…
John Ballantyne – Sim, sim. Eu tinha deixado de tomar o medicamento, agora me lembro. Entrei em euforia e deu-me uma total amnésia: eu próprio acreditei ser Freud!
Dr. Alexander Brulov – E assim confundiu o suposto assassino que se julgava com o suposto assassinado: passou a ser ele...
Drª. Melanie Klein – E concorda que deve descansar uns dias aqui connosco?
John Ballantyne – Sim, não há problema. Sobretudo, fico contente por não ser nenhum criminoso e por me libertar um pouco desta situação angustiante...
Drª. Constance Petersen – Mas, Dr. Brulov, o que é que fazia arrepios a Ballantyne: o meu garfo ou o atrito da toalha?
Dr. Alexander Brulov – Nem o garfo, nem o atrito, mas as marcas do garfo na toalha, as riscas paralelas e compridas. John Ballantyne era, antes de demonstrar sintomatologia psicótica e passar à fase nosográfica, estudante da Escola de Psicologia, nunca tendo chegado a terminar o curso. Mas ainda teve ideias de vir a ser compositor sinfónico, por pueril e adolescente formação musical, e ficou com uma enorme frustração por nunca ter vindo a sê-lo. Uma pauta – como muito bem observou a menina Petersen – metia-lhe horror e impregnava-o de uma sensação de dívida, conjugação de um trauma.
Drª. Melanie Klein – Obrigado, pelo esclarecimento, Dr. Brulov. Penso que compreendemos todos. Bem, tudo está bem quando acaba bem. Terminemos esta ceia. Só tenho aqui mais uma coisa a acrescentar. Dr. Otto Rank: hoje, apareceu, depois de andar umas horas desaparecido, o doente António Gomes Leal. Foi momentaneamente confundido com Sir Salman Rushdie, depois do passeio ao Parque da Cidade. Só que agora está perfeitamente lunático e com barba comprida. Acho difícil que possamos fazer alguma coisa com ele. Sugiro que o Dr. Otto o veja amanhã de manhã.
Dr. Otto Rank – Demasiados casos incríveis para um só dia… Mas, amanhã, tratarei disso.
Drª. Melanie Klein – Então, vamos?

(saem todos de cena. Apaga-se a luz do palco, dá-se uma pausa, enquanto o Dr. Otto Rank se instala, sentando-se numa cadeira voltada para a mesa de uma sala do Serviço. Introduzem, também às escuras, um relógio a marcar, pelos ponteiros, meio-dia e meia hora. Volta a acender-se a luz. O Dr. Otto Rank escreve um pouco num relatório qualquer. Até que aparece em cena a Drª. Melanie Klein)

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Cena 5

Drª. Melanie Klein – Olá, bom dia, Dr. Rank. Como vai isso? Já viu o doente Gomes Leal?
Dr. Otto Rank – Já, sim, Drª. Melanie. Parece um caso perdido. Não percebo como ocorreu tão súbita transformação. A medicação parece ter alterado – apenas ligeiramente, mas alterado – os seus traços fisionómicos. Não consegui, desta vez, obter nada dele. Imita ruídos, imita sirenes, alarmes e bips e vocifera, às vezes, e não diz nada de articulado. É uma pena. O mistério há-de permanecer insolúvel. Mas deverá permanecer no Internamento, pois está incapaz de fazer face a qualquer possível existência lá fora.
Drª. Melanie Klein – O que é que lhe terá acontecido, enquanto desapareceu?
Dr. Otto Rank – Sinceramente, não sei, mas talvez algo de bastante chocante…
Drª. Melanie Klein – É… O senhor Gomes Leal não deve ter recuperação possível: caso encerrado. Que tal irmos almoçar, Dr. Otto?
Dr. Otto Rank – Concordo. Nada como um bom almoço para retemperar os ânimos. Almocemos, então.

(saem de cena)

FIM

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