terça-feira, 1 de novembro de 2011

existensão sobre 'borbotom' de alberto augusto miranda


existensão
cinco pontos notáveis em borbotom


1.

Descompõe-se o arco que disparou em direcção ao alvo de uma maçã arquétipa. Desagua a flecha do sema, tudo no ar se manifesta em variedade. “Atenção – diz Zenão –: a flecha nunca atingirá o alvo.”; e, a partir daí, poucos lograram livrar-se deste nó-gordio, a não ser ao modo expedito de Alexandre: às esgouvinhadas. 22 séculos após Zenão, só tanto tempo depois, Johan Gauss, ainda petiz, suposto pelo professor entretido com os colegas a resolver um problema difícil, apresenta quase de imediato a solução. O problema consistia em somar 1+2+3+4+5+6... até ...98+99+100; a solução correcta de Gauss foi 5050. Tinha achado a fórmula do somatório de uma progressão aritmética. Logo a seguir, veio a do somatório de uma progressão geométrica e estava assim desmistificada, desmitificada (no sentido de esclarecida) a aporia de Zenão. O caso é sério e, por isso, não importa o eventual aborrecimento de offélias exauridas: na verdade, filósofos como Nietzsche ou Bergson, cada um à sua maneira, não ultrapassaram o maldito paradoxo: mercê talvez de incompetência matemática neste preciso ponto dos limites de progressões. Afinal, a flecha atinge o alvo: afinal, Guilherme Tell não precisa de reclamar com o gerente da frecharia. Quando muito, este obtemperará: ”O alvo para onde dispara é que não é o mesmo que quando atingido pela flecha. Nem a flecha é a mesma.” Sim: o corolário reverso do heureka da puerícia gaussiana é que A=B. Compreendido? Já que 0,(9)=1, então A=B. Quem está de novo a aparecer? O Diabo: o Diabolus na matemática.
0,(9) é uma dizima infinita periódica que acaba por inteirar-se, mas que dizer dos números irracionais? Não serão eles – pela insusceptibilidade de definição – vivas epifanias diabólicas? Hoje, o Diabo está em refestelo no âmbito epistemológico, sendo a matemática um cofre-forte purulento: são os horizontes-limite cosmológicos, é o princípio da incerteza. E que dizer das ciências humanas? A tessitura das posições, ou dos ideários, vai de um antípoda ao outro: é claro, com a chancela do “rigor cientifico”. Mas nem ao mais boçal acéfalo escapa a rigidez desta ginástica de máscaras e já tresanda a moralina do “politicamente correcto”. Na verdade, provando-se num papel que A=B (ou que A diferente de A), destitui-se uma lógica aplicada da sua tautológica identidade: reduzimo-la a texto, interpretação (ainda que a contraprova, também ela, seja texto num papel, interpretação). “Não há factos; somente interpretações.” É sobre a matemática que incide o vidro de aumento: não é ela a prima-dona da Razão? Não importa se o problema de Fermat só agora foi resolvido: foi resolvido no papel. Não se escamoteia a pasteurização ou os efeitos em Hiroshima e Nagasaki; mas quando se constata, como Gilles Deleuze, que a “Razão é um fragmento da Des-razão” (o conjunto dos reais compreendendo os irracionais) e se diagnostica, como ele, que o mundo em que vivemos ainda atravessa “estádios vizinhos de zero”, já não nos reconhecemos na fímbria de um qualquer pós-modernismo emancipado.
A irracionalidade remete para o inconsciente, para o sonho, para o animal e para a loucura. A filosofia, desde há muito íntima amiga do Diabo, tem as suas posições sobre o tema. Faz-se aqui o recenseamento de algumas sugestivas: por exemplo, “A loucura é rara nos indivíduos – mas é a regra nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas”; ou “E, por vezes, a própria loucura é uma máscara que esconde um saber fatal e demasiado seguro”; ou “A loucura indica o momento em que as máscaras, cessando de comunicar e de deslocar-se, se confundem numa rigidez de morte”; ou ainda “Em quase toda a parte, é a loucura que aplana o caminho da ideia nova, que rompe a proclamação de um costume, de uma superstição venerada. (...). Compreendem porque foi precisa a assistência da loucura? De qualquer coisa que fosse tão terrível e tão incalculável, na voz e na atitude, como os caprichos demoníacos da tempestade e do mar e, por consequência, de qualquer coisa que fosse, ao mesmo título, digna de receio e respeito?” e “(...) não havia outra coisa a fazer, quando eles não eram verdadeiramente loucos, senão vir a sê-lo ou a simular loucura”. Pensamentos como estes desarmam a norma e instilam a dúvida no formatado mentol: há um grão de razão na loucura – ora é dela, da loucura, que se fez o elogio; não da estultícia – como Erasmo, do marasmo.

2.

borbotom, de Alberto Augusto Miranda, é um número irracional; ou, se se quiser, uma dízima infinita não-periódica, como Pi. “Vem aí a Repetição! Vem aí a repetição!”, exclama-se no seu final. Ora, trata-se do eterno Retorno do diferente: de período não repisado, mas desenvolto no espaço e no tempo numa espiral áurea aerodinâmica. Tal é a relação biunívoca, leal até à infidelidade, que borbotom imprime no decifrar do aparente esoterismo derivado de um manancial de inúmeros hieróglifos. É uma relação de compreensão paulatina: o caudal do borbotão nutre com o tónus das nozes maduras, prodigaliza-se torrentoso. Perpassam, em jacto, no desvelamento do véu apolíneo da ilusão, na dionisíaca dissolução do sentido: a comédia sardónica, a sátira viperina, a paródia barroca; e, já como téssera-reverso, a tragédia licenciada em borboletas.
Aliás, o arsenal semioclasta e blasfemo de borbotom não se reduz a hieróglifos que poderiam parecer demasiado pessoais ou indesvendáveis, num prematuro juízo sobre a cifra escondida e o processo de determiná-la. Além dos hieróglifos, prevalecem os calembures, os oxímoros, os anacolutos, ou até palavras-mala – ou, melhor, conceitos-mala que afloram como motivos no des-concerto: é o caso do “mármore”, das “coxas tatuadas” ou dos “sobreterrâneos”. Não se trata da urdidura de técnicas literárias como causa, com fim deliberado, mas de um automatismo mediúnico e catártico em relação ao qual essa nomenclatura só pode ser adscrita como efeito de um meio acidental. As palavras-mala, os calembures, ou até os anagramas, conotam uma pluralidade de séries de base. Deleuze propõe que é o não sentido que anima as séries, dotando-as de sentido, circulando através delas. É a palavra-mala, “na sua ubiquidade, no seu perpétuo deslocamento, que produz o sentido em cada série e de uma série para a outra, não cessando de deslocar as séries”. Em suma, “o não sentido não é a ausência de significação, mas, pelo contrário, excesso de sentido ou o que dota de sentido o significado e o significante”.
Palavras-mala, palavras-alçapão. Qualificar borbotom como um conjunto de glossolálias lucubrativas oriundas de uma mente perturbada, com o travo dos tanatórios, é trair um carácter de cromo formatado pelo hodierno behaviorismo imperialista da dita “normalidade”. Aliás, quando o objecto borbotom se encontra a ser subitamente folheado por um desses obtusos normativos, este tenta livrar-se dele com a mesma celeridade como se manuseasse... Torresmos incandescentes! Seja queimadura, seja... Dor de cromo!

3.

O violento arsenal semioclasta é a mediúnica libertação do estro poético. borbotom é uma arma de guerra, uma bomba espoletada, “um fuzil apontado à deriva de um imaginário exausto”. Ao invés, não se afirma como um contrapoder de conjuração catilinária, com precisão de mistagogos frenéticos. A irresponsabilidade é iconoclasta; a iconoclastia, irresponsável. Ora, é um erro pensar-se que não se está a jogar: Dionísio é jogador, afirma os membros dispersos; os fragmentos, do acaso. Já então se concede a borbotom a faculdade de veicular as “regras do jogo”, de estabelecer um código quântico: este não se pode localizar aprioristicamente na metalinguagem que se lhe apõe, mas tem de ser reconstruído, ou “descontruído”, seja por um temerário edifício artificial, virtude do “poder do falso”, seja por um processo heurístico policial, na relação com a obra.
É preciso, a expensas das ferradelas iniciais “no ancinho dos desejantes”, conhecer as cartas com que se joga. Mas um pouco adiante e já se apreende que o jogo, aqui, está destituído de princípios teleológicos: que a regra, se a houver, é a de “ao fetiche da eternidade, cheirar-lhe o instante durante o instante, não o colher para o levar para a cama, não ser necrófilo”. Realizar que “tudo se pode reduzir a uma nota, a Verdadeira. O modo, o Intenso com que nos relacionamos com a nota. Como lhe pomos o dedo sem cuidados intensivos de porcelana”. Trata-se, portanto, de um elo iminentemente musical com os avatares do devir cósmico, num diaporama de pendor holístico.


4.

É a capacidade única da música quebrar as mediações de que o logos não prescinde”, ao mesmo tempo que provoca “o retorno ao seio de uma unidade primitiva do ser”. Esta unidade é a micronésima hipótese de actualização do ADN, é o terminal da Tribo. Logo: ”pai nº.5” ou “mãe nº.328” não são glossolálias – consistem, sim, na forja de personagens conceptuais sólidas e espessas; ou seja, com “rigor científico”. Da unidade à pluralidade é um és-não és: somos terminais de tribos sedimentadas no ADN desde há tempos imemoriais. O nosso corpo nem sequer é o mesmo durante dez minutos seguidos: a consciência é volúvel; o alvedrio, irrisório. Quando um dos elementos da tribo se arvora em ditador de todos os outros, ficamos doentes. O suicídio será então um altericídio (quando o ditador o delibera), pois nem sequer se é dono do corpo, ele não nos pertence: escrúpulo ético a sopesar.
O terminal é ab-origem rizomática do automatismo expurgatório das cerca de duas centenas de personagens, congrossistas com direito a pivot que participam na video-conferência. É o coro dos bodes, o coro dos sátiros, que é posto no primeiro plano da “poça”. Pulveriza-se qualquer protagonismo individual: “o conceito é vicinal, não hierárquico”. Então, escutamos o contraponto deste “Theatrum Mundi” e o lirismo da sua oralidade, da sua assertividade que dirige a selvajaria com elegância, infiel às conveniências, num eufónico des-concerto de dissonâncias inconciliáveis.
O fenómeno democrata é actual e os actuais demagogos já soletram “democracia” como um estribilho. Estão estatuídos, na normalidade, os debates democratas com um pivot a moderar e a distribuir, por meio de uma limitada ampulheta, uns grãos de areia a cada participante: é dizer, uns irrisórios minutos de tempo para expor a opinião. Estamos longe da agonística dialógica platónica. O mais certo, é não estar presente no debate ninguém verdadeiramente interessante: signo da diferença e não da antítese. Pelo que, neste igualitarismo democrata, tudo circula pela mais estreita filodoxia.
Borbotom radicaliza uma democracia utópica, que já não se formula nos trâmites tradicionais. Já nem é uma democracia, é uma acracia de micro-poetas, toda uma manifestação rizomática de uma região afectiva autónoma e ferozmente independente.

5.

I’m crazy”, “je suis fou”: os ingleses e os franceses resumem-se a uma frase. Já o português distingue, em cada uma delas, duas orações: “eu sou maluco” ou “eu estou maluco”. O ser e o estar. O ser define-se pela incompletude do ser, ou pelo como se vir a ser o que se é. O estar é mais preciso (e mais conforme com a História); mais preciso ainda, o estando. Estar nómada por vocação e viajar, sem trânsito, pelo transcurso do estando, sem as grilhetas egópatas do ser. Daqui resulta que borbotom se coloca na contenção, no despojamento, na desapossessão ética das vozes que convoca. As personagens não são títeres nem marryonettes de alguma cabeça de congro descarnado, pescada num charco de provérbios sonambúlicos; nem de alguma carminativa sentença obliterada do calhamaço de algum grossista de requeijão; nem da iluminação ébria de um grosso. Transvia-se a palavra, na emissão descontínua mas clara de quesitos de dimensão filosófica, de preliminares noológicos, sem os quais não é possível uma abordagem significativa: refrigério compensador, esta brisa lúcida de Cassandra que se prodigaliza ao arquipélago fractal. A forma de expressão de Cassandra, o seu tom, são sibilinos. Em borbotom, não sentido é já excesso de sentido: lá se desloca a casa vazia, o lugar do morto, a palavra-mala, o objecto=x: “o que tem identidade por estar ausente dessa identidade; e lugar, por se deslocar em relação a qualquer lugar”.

in Heurética, Dezembro, 2006

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