quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Alexandre Teixeira Mendes sobre 'Heurética'


Sexta-feira, Janeiro 05, 2007

Alexandre Teixeira Mendes lê Jorge Taxa

Jorge Taxa: pensar não é fácil


O dionisíaco e o geométrico, problemas e extensões

Alguns textos são únicos e insubstituíveis, enraízam-se na condição necessária do pensar: uma inter-disciplinaridade vislumbrada. Entre esses textos, encontra-se Heurética de Jorge Taxa (Incomunidade, Dezembro, 2006). Vários níveis estão misturados aqui: o seu discurso matemático convincente, que se apoia, ao que parece, nas geometrias não euclidianas, revela-nos uma arte de filosofar sub-entendida. Este livro-tese – que traz consigo novos domínios de investigação – explana-se através da vocação poiética ou criadora, formadora, da linguagem. Ousaríamos dizer como Lacan que as funções homogéneas da consciência são a identidade da linguagem e um estado de desconhecimento. Concedemos por enquanto – como assinalou Richard Peters – que as palavras são como "postes sinalizadores erguendo-se numa terra estranha". Quem pode e sabe superar o carácter subdeterminado da experiência – e por isso útil para fazer desabrochar o aspecto criativo do uso da linguagem – melhor saberá formular esquemas e argumentos válidos: problematizar. Como poderia Jorge Taxa proceder de outro modo? Hoje, sabemos que não é possível abordar o nosso tempo sem evocar o alcance da semiótica, da heurística e da revolução científico-tecnológica que ditou a inserção de conceitos físico-matemáticos nos estudos estéticos. O quadro, assim exposto, explica por que o nosso autor re-assumiu, num estilo de supressão-acréscimo, – quando está na ordem do dia a questão da desmaterialização da cultura material – as interconexões das linguagens lógico-formais e geométricas como da filosofia e do pensamento poético.

"Armação lógica"

O seu género ensaístico desenvolve-se – para usar um rótulo normativo – a partir da influência do modo matemático de pensar (associado à "armação lógica") e em última instância da filosofia especulativa (que se traduz na tentativa de construir teorias sobre a realidade, ou o cosmos, ou o que seja, para explicar características problemáticas do pouco que realmente sabemos sobre as coisas). O estranho, sim, neste estudo, que inclui dois artigos – "Existensão – cinco pontos notáveis em borbotom" e "Três heurekas geométricos" –, é a simbiose do assertório e do apodíctico, do dionisíaco e do geométrico. Notemos que, pelo menos neste caso, a sua abordagem também se caracteriza pelo uso do "pastiche" como modo de exposição. Basta considerar ainda as referências ao método de demonstração matemática, que consistem na dedução lógica da proposição que há que demonstrar a partir de outras proposições previamente estabelecidas. Não obstante, refere-se, este livro, às visões especulativas e críticas de Zenão, Platão, Demócrito, Erasmo, Nietzsche, Stirner, Bergson, Eugene Catalan, Gauss, Escher, Penrose, Deleuze ou Aldo Rossi. Tudo isso parece claro e natural.

Diabolus

As reflexões de Heurética, examinadas na perspectiva filosófica e trans-disciplinar, remetem-nos a uma linha própria de investigação que tem por base o comentário sistemático e erudito. Jorge Taxa explora ao máximo o ponto de vista diferencial. Na sua meditação – e aqui está a grande diferença – não se identifica com o exacto, o objectico, o simétrico. Hoje, todos sabemos que a ciência, de modo geral, só fornece afirmações prováveis, não é infalível. Poder-se-ia observar, seguindo os grandes lógicos da modernidade, a prevalência da noção de consistência no pensamento axiomático. "Se a matemática é consistente, – anotou Kurt Godel –, então ela é incompleta". A dificuldade nesse caso provém de uma formulação imperfeita do pensamento? A "indecidibilidade"? Dever-se-ia dizer, ainda remetendo o leitor para Heurética, que Jorge Taxa não apenas recorre à matemática, mas à poética. A sua familiaridade com a geometria – como p.e. a euclidiana que os entendidos dizem se sustenta bem em nosso pequeno mundo – parece de capital importância. Esse é o primeiro ponto. Mas o que significa quando o nosso autor refere o Diabo: o Diabolus na matemática? Assim, por exemplo, quando nos diz serem os números irracionais – pela insusceptibilidade de definição – vivas epifanias diabólicas? "Hoje, o Diabo está em refastelo no âmbito epistemológico, – acrescenta –, sendo a matemática um cofre-forte purulento: são os horizontes-limite cosmológicos, é o princípio de incerteza" (p.6). Afigura-se-nos que um exame rápido da experiência humana revela o conflito tradicionalmente polarizado entre Deus e o Diabo (é bem assim, aliás, que o concebia José Régio). Se a palavra Deus corresponde a algo é bem a uma nova maneira de colocar e de explorar o facto Absoluto (o Absolutamente-Diferente): uma maneira que teve o seu ponto de partida na filosofia de Kierkegaard. Mas não nos afoitemos de dizer que o Diabo ou Satã é a personificação do mal. Satanás é, também, um denominação proveniente da tradição judia, em concreto da literatura do período apocalíptico. Deriva, no seu sentido estrito, de uma raiz que significa "opor-se", "obstruir" ou "acusar". Diremos que a palavra Satã – e é a única maneira de não incidir na confusão – significa "opositor" e traduz o grego "diabolos", "adversário". Sabemos que, por sua parte, Diabo é a denominação derivada do latim diabolus, por sua vez proveniente do grego diabolos (caluniador ou acusador) de diaballein (caluniar). O sentido da raiz diaballein é, como já dissemos acima, "opor-se". Até aqui a primeira dificuldade. Não custa lembrar que a experiência do religioso traga implícitas apenas duas possibilidades: a adoração ou o ateísmo da revolta. Característica neste particular é a atmosfera demoníaca que envolveu num bloco compacto toda a religião. Quer dizer: a chamada demonologia das origens ou, melhor dizendo, as crenças associadas ao tabu e ao mana, e em que o sacrifício passou a ter um objectivo expiatório (e, nessa medida, a reconciliação com os "demónios"). De facto, há uma consonância – como acontece frequentemente – entre o medo divino e a repulsão demoníaca.

"Fazer emergir"

Jorge Taxa é um pensador "de grau n" (que permanece fora das órbitas canónicas). A sua leitura deixa a impressão fenomenológica do "fazer emergir". Citando com frequência filósofos e matemáticos na "contramão" do seu tempo, Jorge Taxa não se contentou em encontrar um título particularmente feliz.
E é porque recordamos uma narrativa relativamente pouco conhecida de Edgar A. Poe – em torno do universo material e espiritual – Eureka –, publicado em Março de 1949. Quem uma vez entrou em contacto com este verdadeiro poema cosmológico, para sempre se sentirá atraído por ele. Mas avancemos. Conhecem-se as linhas mestras das reflexões de Taxa; elas adivinham-se no texto intitulado "Três heurekas geométricos". O que interessa fixar como ponto assente são as configurações de um questionar à luz do contributo da geometria e do seu influxo (enquanto projecção primeira da apresentação axiomática de uma disciplina matemática). A geometria origina-se como uma forma de raciocinar, de acordo com um certo ideal metódico (assente em teoremas pré-existentes). Nesse plano, trata-se de algo que pode pôr-se em evidência à margem de toda a doutrina filosófica. A razão geométrica constrói dedutivamente certas sínteses de elementos a partir de certas sínteses dadas. As primeiras se chamam teoremas e, as segundas, postulados: mas umas e outras são no essencial de idêntica natureza e só se distinguem pela sua diversa função metódica: umas são sínteses postas em virtude do método: outras, são sínteses dadas, das quais depende a possibilidade do exercício do método mesmo. Contudo – e aqui está a grande diferença –, Jorge Taxa refere-se a um matemático da importância de Gauss que realizou a experimentação: por métodos ópticos – usando a interpretação física da linha recta como a trajectória de um raio de luz – determinou a soma dos ângulos de um amplo triângulo delimitado pelos cumes de três montanhas. Dentro dos limites do erro experimental, descobriu que essa soma é igual à dos ângulos rectos. À diferença dos critérios de Eugene Catalan, respeitantes às formas geométricas do dodecaedro, os passos que Jorge Taxa ensaia, no assim chamado Triacontaedro Rômbico TX, são cautelosos. Este "algo" – mais fortemente visível nas ilustrações – remete-nos a um universo perceptivo e heurístico. Finalmente, constataremos a (re)leitura de borbotom de Alberto Augusto Miranda. O seu ponto de partida é a análise do "arsenal semioclasta e blasfemo" deste autor, que explora ao máximo esse entrelaçamento do que o filósofo Donald Davidson chama de esquema de triangulação: falante–intérprete–mundo. Um texto esquizofrenicamente cindido e percebido como "cifra", onde a descontinuidade pressupõe o continuum, que desenha, a seu ver, a face de um "automatismo mediúnico e catártico" (p.8). É essa a situação: a de um texto teatral "rizomático" – compulsivo-obssessivo – que se dissimula para além ou no seio da palavra irredutível.


Alexandre Teixeira Mendes

Sem comentários:

Enviar um comentário

Seguidores